Não apenas Sérgio Moro .
Vão tentar desacreditar o vídeo em que Marilena Chauí (veja abaixo) denunciou ontem o uso da formação escolar e acadêmica para preparação de golpistas na América Latina porque ela citou o FBI que, provavelmente, não vem ao caso.
No entanto, o sistema de articulação entre estado e empresas para propaganda e ensino nos Estados Unidos (no particular, visando a política externa) é bem mais avançado e sofisticado do que o modelo desenvolvido pelo Dr. Goebbels na Alemanha, em que se inspira. Há um livrinho, editado no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas com o patrocínio da Aliança para o Progresso em 1964 – Relações públicas, propaganda & opinião pública, de Harwood L. Childs – que deixa isso claro.
O processo de oferta de empregos – contratos e tenures (estabilidade), bolsas, plateias e honrarias – , geralmente via fundações empresariais, é uma forma de investimento que tem dado excelentes resultados, desde o Manhattan Connection até Fernando Henrique Cardoso, exemplar admirável do que se pode obter inflando e masturbando a vaidade de um tolo.
Conheci alguns dos pioneiros nessa dedicação integral a promover os gringos: Glycon de Paiva, que, em meados da década de 1960, mapeou numa palestra as reservas minerais da Amazônia quando não havia satélites nem recursos conhecidos de sensoriamento remoto; Celso Kelly, autor do primeiro currículo de ensino de comunicação, que previa formação polivalente dos jornalistas (evitando o “idealismo” esquerdista, como o atual projeto da “escola sem partidos”); donos de editoras que impulsionavam o mercado livreiro do Brasil com obras estrategicamente escolhidas – até mesmo de correntes de esquerda (como Frankfurt) capazes de confrontar o pensamento de Georg Lukacs, então o mais temido pelos analistas da CIA.
Na periferia desse núcleo de eleitos – cuja seleção ideológica reflete as tendências do stablishment, ultimamente íntimo do fascismo – forma-se o exército dos seguidores por convicção, que confundem propaganda com crítica e ideologia com ciência. É muitas vezes difícil destrinchá-las, mas a melhor política é a desconfiança.
Não há como negar o papel da Escola das Américas (School of Americas, veja aqui) na formação técnica – mas, sobretudo, na formação ideológica –, dos militares que executaram, na América Latina, os golpes de estado de interesse dos Estados Unidos.
Da mesma forma, não se pode excluir o intenso treinamento de advogados, procuradores e juízes na análise do mecanismo que levou à adoção de métodos antes intoleráveis (principalmente processuais) da polícia e justiça federal americanas.
Até há pouco, a doutrina jurídica brasileira, com seu discurso liberal, não se afastava radicalmente do Direito Romano. Certo que o liberalismo da vitrine sempre foi verniz europeu em uma instituição nascida do esbulho de terras e negócio de escravos, mas a verdade é que ele serviu para construir imagem simpática dos bacharéis, apesar de seus serviços caros e seletivos, das ditaduras e privilégios de casta.
Importar, como se faz agora, de maneira acrítica, instituições jurídicas é um salto perigoso: não resolve os problemas e os agrava, criando duplicidade de critérios e agredindo valores consolidados há séculos – senão na prática, pelo menos no projeto de nação: a convivência, a tolerância, o perdão, o reconhecimento de nuanças da diversidade.
Ainda há reações à tradição pragmática do direito saxônico, reconfigurada pela prática histórica do FBI de J. Edgar Hoover e das agências que prosperaram no contexto das guerras frias – a primeira e atual. Mas ela está aqui, representada por personagens do meio juridico brasileiro – Sérgio Moro entre eles.
Uma amiga trouxe-me o relato de um estudante sobre encontro em Brasília em que futuros advogados aplaudiram de pé Jair Bolsonaro – aquele jazigo da inteligência, casamento de anta com troglodita.
Parece-me claro indício de que, difundindo-se em cursos de Direito por onde transitam pacotes de ideologia compactada, a ilusão de que o crime é ato estritamente individual, que perturba a ordem da sociedade perfeita, onde tudo o que importa é a lei e a ordem, periga ser atraente para alunos que aprenderam na infância e adolescência, a admirar super-heróis e, em boa parte, objetivam carreira policial ou na advocacia pública.
No entanto, pensada em profundidade, tal representação só cabe na mentalidade dos autores de seriados de TV como Criminal Minds ou House of Cards. Nela, a Justiça perde seu sentido social e passa a ser apenas a revelação das intenções pérfidas do bandido em sequências de 45 minutos.
PS. O vídeo da fala de Chauí, publicado pelo Nocaute, de Fernando Morais, abaixo.
PS2. Por um erro do editor, o post ficou sem a assinatura correta por alguns minutos.
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