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Fernando Frazão / Agência Brasil Marcha das Vadias, no Rio, em agosto de 2014: a conscientização é ferramenta para lutar contra os abusos |
O
femicídio emerge de uma base social em que diversas formas de abuso da
integridade da mulher são naturalizadas no cotidiano
Quando
se fala em violência contra a mulher, a primeira coisa que pode vir à mente é a
agressão física*. Isso ocorre por razões óbvias: ela deixa marcas visíveis, dói
na pele e na alma, humilha e mata. No entanto, neste 8 de Março, gostaria de
chamar atenção para o fato de que o femicídio emerge de uma base social mais
profunda, em que diversas formas de abuso da integridade da mulher são
naturalizadas no cotidiano.
Os dados de violência contra a mulher no Brasil são alarmantes. Somos o quinto
país em violência contra a mulher. A cada cinco minutos, uma mulher é agredida
– isso contando apenas os casos que foram denunciados, já que muitas mulheres
se escondem de vergonha, dor e medo do agressor (que em 70% dos casos é o
próprio parceiro).
São
cinco mil mulheres mortas por ano, treze por dia. A violência contra a mulher
não pode ser tratada como uma questão exclusivamente de gênero, já que ela está
diretamente relacionada com a violência estrutural, com a desigualdade social,
regional e racial. As maiores das vítimas desse femicídio são justamente as
mulheres mais pobres, negras e do Norte e Nordeste do país.
A
agressão física e o femicídio não nascem do vácuo, mas possuem raízes em
representações sobre a mulher enraizadas em nossa cultura. Eles são apenas o
estopim de uma sociedade marcada pela presença de diversas formas de violência
contra a mulher que são menos visíveis e, portanto, nem sempre tratadas como
violência.
Violência
é toda forma de violação da dignidade que causa dor física ou emocional. Muito
se fala em agressão doméstica, mas é assustador o silêncio e a ignorância que
existem em torno do assunto de relacionamento abusivo, por exemplo. Ciúmes não
é amor. Controle não é amor.
Levantar
a voz e jogar um objeto na parede não são atos inofensivos para extravasar a
raiva, mas um alerta vermelho. Fuja. Humilhação da mulher na frente dos outros?
Fuja.
A
dominação psicológica é considerada em muitos países como uma violência tão
grave como a física, pois ela destrói a autoestima, anula a personalidade e
tudo é vivido por meio de um processo invisível e solitário.
Uma
propaganda de cerveja, que estampa diariamente a bunda da mulher, agride e
assalta a personalidade de muitas mulheres. Cantadas também agridem. Temos o direito de caminhar na rua com a roupa que quisermos sem sermos molestadas. É
lamentável ainda ouvir que uma mulher deveria ficar feliz por ser assediada nas
ruas e por levar cantada.
No
ambiente de trabalho, funcionárias têm que não apenas ouvir “galanteios” de
seus chefes e ficar quietas, mas também agradecer o “elogio”. O mesmo acontece
com alunas em relação aos seus professores.
Existem
muitas pessoas que defendem as cantadas – seja do ambiente do trabalho,
acadêmico ou mesmo o fiu-fiu da rua – como forma de praticarmos nossa brasilidade,
ou seja, de exercermos a sexualidade em comparação a tantos países onde as
pessoas são reprimidas.
Eu
tenderia a concordar se as cantadas fossem multidirecionais e se o resultado
dessa prática unilateral não culminasse em um sistema social que acaba em
espancamento, estupro e mutilação de mulheres.
Também
ainda existem pessoas que, quando ouvem falar de estupro, pensam naquele cara
que pega uma mulher de roupa curta e justa numa praça escura. Embora isso seja
um cenário possível, o estupro é muito mais ordinário do que se imagina e é
praticado por vizinhos, parentes, colegas e parceiros.
Existem
muitas mulheres que sequer têm noção que já passaram por situações de estupro.
Situações em que não consentiram enquanto estavam embriagadas, por exemplo.
Também
existe a violência que a mulher se submete por medo, vergonha ou culpa. Lá no
íntimo a mulher sabe que tinha algo errado naquele sexo que ela não queria
fazer, mas se sentiu culpada (de não ser a mulher maravilha na cama) de pedir
para parar no meio do ato – mesmo que fosse para o namorado.
Muitas
mulheres não sentem prazer e muitas sentem dor durante o sexo. Parceiros
abusivos, de um lado; falta de informação, vergonha e sentimento arcaico de
obrigação sexual, de outro, fazem com que mulheres se coloquem nessa situação
degradante.
Quando
se fala de estupro é preciso discutir consentimento. Mas as coisas não são tão
simples assim. Também é preciso discutir o que é consentimento para meninas
muito jovens que foram educadas em uma sociedade autoritária de valores
masculinos.
Nós
só podemos falar de consentimento, portanto, quando estamos falando de mulheres adultas que já possuem consciência não apenas de seu corpo, seus pontos de dor
e prazer, mas também das relações de poder que estruturam o nosso cotidiano.
Mas infelizmente estamos muito longe disso, já que o sexismo não é discutido obrigatoriamente nas escolas.
É
risível, portanto, falar em consentimento quando nos referimos a uma aluna
jovem que manteve relações sexuais com um professor, ou funcionária com seu
chefe, por exemplo. É muito como a coação direta ou indireta no mundo acadêmico
ou empresarial.
Afinal,
o poder é a coisa mais fascinante e desastrosa que o ser humano inventou. Como
sabemos, tanto o ambiente acadêmico como empresarial estão repletos de homens
que usam o poder e o conhecimento como uma arma de caça e coação.
Nós,
mulheres, precisamos falar de violência de forma plural porque a cantada na rua
e a bunda da propaganda de cerveja são apenas a base de um sistema cultural que
poderá culminar em morte.
Ninguém
fará nada por nós mesmos em um sistema de poder que é predominante dominado por
homens. É preciso ter mais mulheres no poder, mulheres feministas. Da mesma
forma, é preciso empoderar mulheres para que respondam a cantadas sem medo, que
boicotem produtos que objetificam seus corpos, que denunciem seus chefes e
professores e, finalmente, que fujam de relações abusivas.
É
preciso ensinar sexismo – e seu antídoto, a igualdade de gênero – nas escolas
para que as meninas, já desde cedo, saibam se defender em uma sociedade de
predadores. É preciso rever nossos ensinamentos para nossos alunos e alunas,
sobrinhos e sobrinhas, filhos e filhas.
Infelizmente,
a normalidade de ensino doméstico de gênero ainda é dizer para os meninos que
eles devem ser gentis, ao estilo “abrir a porta do carro para as mulheres”.
Gentileza é a base de tudo, mas dispensamos aquela gentileza que trata a mulher
como uma flor frágil. Queremos a gentileza do respeito e da escuta.
Para
as meninas, ensina-se a se vestirem decentemente e a se comportar “com modos”.
Como agir com modos é uma coisa intangível, porque isso simplesmente não
existe, temos uma sociedade em que meninas nunca se comportam e, de forma
culturalmente legitimada, pagam um preço alto por isso: com sua pele, sua dor,
sua carne, seu útero e sua vida.
Oito
de Março é dia de luta.
*Este
texto é parte da cartilha do PSOL “A Luta das Mulheres Muda o Mundo”, a ser
lançada ainda em Março. Agradeço à Luciana Genro pela oportunidade de escrever
sobre o tema.
Fonte:
cartacapital
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