Nascido na ditadura e com origem no iorubá e nagô, vocabulário reúne apropriações linguísticas feitas por homossexuais e travestis
Nhaí, amapô! Não faça a loka e pague meu acué, deixe de equê se não eu puxo teu picumã!”.
No último domingo (4), 4,1 milhões de estudantes se depararam com a frase acima enquanto resolviam a prova de Linguagens e Códigos da edição 2018 do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
Ler atentamente o título do texto que a acompanhava, “Acuenda o Pajubá: conheça o ‘dialeto secreto’ utilizado por gays e travestis”, era essencial para resolver o estranhamento causado pela combinação pouco usual de palavras. Afinal, a mescla de português informal com uma fala próxima a línguas africanas pode soar incompreensível à primeira vista – principalmente se você não tem a mais remota ideia do que se trata o pajubá.
Também chamada de bajubá (com “b” ao invés de “p”) a linguagem pode ser definida como o “repertório vocabular e performativo de certa parcela da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais)”, explicou à SUPER Carlos Henrique Lucas Lima, professor da UFOB (Universidade Federal do Oeste da Bahia) e autor do livro “Linguagens pajubeyras: re(ex)sistência cultural e subversão da heternormatividade”.
“É uma série de palavras que tem sua origem no nagô e no iorubá [grupos étnico-linguísticos africanos], e considera apropriações linguísticas feitas por homossexuais e travestis”. Tanto o nagô quanto o iorubá, falados em países da África Ocidental, chegaram ao Brasil com escravos africanos.
Mesmo sem saber o que significa “amapô” ou “acué”, é bem provável que você já tenha ouvido algumas delas por aí. Entre as mais populares estão “mona”, equivalente de mulher ou gay efeminado; “gongar” para o ato de zombar de alguém ou alguma coisa, ou então “bafo” e “babado”, sinônimos de novidade.
De acordo com Lima, mais do que criar termos que se aproximem de gírias no português, o pajubá reúne também características linguísticas próprias. Isso aparece, por exemplo, na fala. “Há todo um movimento performático do corpo, a tonalidade das palavras e o contexto cultural em que aparecem”, comenta. “Irene”, o mesmo que velho ou velha, por exemplo, costuma ser pronunciado “ireeeeeeeene”, como se fosse um berro.
Na prova do Enem, toda a questão servia para provocar o aluno sobre a existência de variações linguísticas no português falado por aqui. Marcava a alternativa correta quem concordava que a linguagem pajubá tem “status de dialeto para os falantes” e poderia ser considerado “parte do patrimônio linguístico brasileiro” por ser “consolidado por objetos formais de registro”.
Como “objetos formais de registro”, você pode entender referências na literatura, por exemplo. Criado durante o contexto de ditadura militar, provavelmente entre as décadas de 1960 e 1970, o pajubá ganhou seu primeiro documento oficial em 1995. O livro ganhou o nome “Diálogo de Bonecas”, e foi organizado por Jovana Baby, presidente da extinta Astral (Associação de Travestis e Liberados), do Rio de Janeiro. Entre as mais de 800 palavras listadas está “boneca”, palavra que define travesti.
Em 2006, outra obra independente tentou assumir esse status de “dicionário” do pajubá. “Aurélia, A Dicionária da Língua Afiada”, é assinada por Angelo Vip e Fred Libi. Em mais de 1.300 verbetes, o documento tenta revelar o significado das palavras mais utilizadas.
Para Lima, mais do que um “dialeto LGBT”, as “linguagens pajubeyras”, como chama, funcionam como um instrumento linguístico-cultural que desafia normas de gênero e sexualidade. “O pajubá é um instrumento de gongação, zomba da norma que oprime a comunidade minoritária”.
O pesquisador destaca que a criação do pajubá é uma tentativa de criar uma identidade comunitária entre os LGBTs. Visando isso, a linguagem lança mão de expressões para fortalecer a luta desses grupos, atacando também questões morais e visões moralistas sobre drogas e sexo. “Há no pajubá uma infinidade de palavras e expressões para se referir ao sexo e, de modo mais específico, ao sexo não heterossexual, como fazer a chuca e acuendar a neca, que significam, respectivamente, realizar uma limpeza anal e acomodar/esconder o pênis” exemplifica. “Diz-se, em pajubá, que uma pessoa que vive com HIV tem a Tia ou a Doce e que quem fuma maconha conversa com a Selma ou com a taba, como mais comumente se diz no Nordeste e Sudeste”.
O alvo principal desses “ataques”, segundo Lima, são os padrões de gênero refletidos na linguagem. Todos os idiomas separam a maior parte de suas palavras em masculino ou feminino (a geladeira, o relógio). O pajubá, então, rompe com isso colocando terminações com “a” em palavras masculinas para feminilizá-las – lê-se aqui, a “prédia”; a “relógia”; a “dicionária”.
Para todos aqueles, dos curiosos aos não alfabetizados em pajubá, que ainda estejam na dúvida, a frase que abre esse texto poderia ser traduzida como: “E aí, mulher! Não se faça de desentendida e pague meu dinheiro, deixe de mentiras se não eu puxo teu cabelo!”. Dar calote financeiro em alguém, afinal, não é aceitável por melhor que seja a desculpa – seja ela dada em português ou em pajubá.
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