Gerson
Gomes*
O
Brasil é realmente um país surpreendente. Talvez pela nossa formação histórica,
originariamente autoritária e excludente, a prática dos dois pesos e duas
medidas, simbolizadas nas relações entre a Casa Grande e a Senzala, está
fortemente enraizada na sociedade e na cultura das elites. Graves violações do estado de direito ou da
moral pública são admitidas ou até mesmo exaltadas, desde que praticadas em
concordância com seus interesses, suas preferências ideológicas ou suas
simpatias político- partidárias. É a ética de resultados, cujo corolário é o
cinismo como método de fazer política.
A
tentativa de derrubar a atual Presidente da República, que se iniciou no dia
seguinte à sua vitória nas urnas, é uma ilustração clara desse padrão. Esse
processo está sendo conduzido por um réu por corrupção e lavagem de dinheiro,
membro de um partido cujo presidente, também denunciado em uma das tantas
delações premiadas de moda no Paraná, determinou o rompimento com o Governo,
embora ele mesmo não o tenha feito. O processo é apoiado pela grande mídia e
por líderes da Oposição, todos indômitos críticos da corrupção, embora sobre
muitos deles – órgãos da mídia e líderes – pesem denúncias de desvio de
recursos públicos, tráfico de divisas, sonegação de impostos, recebimento de
propinas, para citar só alguns exemplos.
Não
bastasse isso, o processo de impeachment contra a Presidente não tem fundamento
concreto, jurídico ou factual. Os argumentos invocados para sua justificação
variam ao sabor da conjuntura, dando a impressão de que em realidade há um
prejulgamento a partir do qual se buscam tentativas de incriminação, em um
estilo de fazer inveja aos tempos áureos do obscurantismo inquisitorial.
Impeachment
sem fato comprovado, sem base jurídica, é golpe. Impeachment contra uma
autoridade legitimamente eleita, sobre a qual não existe prova de crime de
responsabilidade ou de envolvimento em atos ilícitos no exercício do seu
mandato, é golpe. E mais, é um golpe que nasce marcado pela ilegitimidade moral
dos que o lideram e de muitos dos que o apoiam, na mídia, no Congresso e no
Judiciário.
Mas,
qual é projeto que os promotores do golpe oferecem ao País? Por que querem
assaltar o poder e derrubar a presidente eleita, atropelando a Constituição e
as instituições democráticas?
Aqui
vale separar duas classes de motivações. A primeira, mais óbvia, é a urgente
restauração do anterior regime de impunidade, com o “engavetamento” das
denúncias e processos contra os implicados em atos de corrupção pertencentes à
Casa Grande e sua entourage, sem prejuízo, é claro, da rigorosa punição, mesmo
sem provas, para a turma da Senzala e seus simpatizantes. A segunda se
relaciona aos interesses econômicos, internos e externos, em jogo. Nessa
esfera, as propostas públicas dos promotores do golpe tem quatro eixos
articulados e interdependentes:
i.
implantação do que os economistas neoliberais e a mídia conservadora chamam de
“reformas estruturais que o País necessita” – ou seja, a reforma da legislação
e das relações trabalhistas, com a perda do poder de negociação dos
trabalhadores e esvaziamento dos mecanismos de proteção do emprego; a reforma
fiscal, para viabilizar o corte dos gastos sociais em educação, saúde,
previdência e em programas de transferência de renda para os setores mais
vulneráveis da população; a liquidação da política de valorização real do
salário mínimo, implantada a partir de 2003; e o aprofundamento e generalização
da privatização dos serviços sociais básicos;
ii.
restauração da matriz econômica neoliberal dos anos 90, com a redução do papel
de coordenação e regulação do Estado na economia e consequente reversão das
políticas de compras estatais, de conteúdo nacional e de financiamento público,
o abandono da centralidade do crescimento e do emprego no desenho da política
econômica e a privatização do que resta de patrimônio público, especialmente no
que se refere ao pré-sal, a outros recursos naturais estratégicos, incluindo a
água, e aos bancos públicos;
iii.
retomada e aprofundamento do processo de inserção subordinada do Brasil na ordem
global, com a intensificação da abertura comercial e financeira da economia, a
adesão a acordos internacionais de investimento voltados para a hierarquização
dos interesses das corporações multinacionais e a adequação do marco jurídico
nacional sobre a matéria à legislação norte-americana;
iv.
a liquidação do projeto de transformação do Brasil em potência regional – com a
reversão da política de consolidação do Mercosul e de outras instituições de
âmbito sul-americano, o esvaziamento das relações com os BRICs e outros
parceiros estratégicos da Ásia e da África, a reorientação do posicionamento do
País nos fóruns internacionais e a adequação
da política de defesa nacional ao padrão geopolítico comandado pelos
Estados Unidos.
Em
resumo, trata-se de reordenar o modelo de acumulação e de distribuição da renda
de acordo aos interesses da Casa Grande e de seus parceiros externos – a
potência hegemônica e as grandes corporações interessadas em ocupar o mercado
nacional, explorar a força de trabalho nativa e controlar os recursos naturais
estratégicos do País. E de assegurar que os custos do ajuste da economia, que a
elite empresarial, beneficiária de bilhões de reais de isenções e renúncias
fiscais, se nega a compartilhar, sejam pagos pelos de sempre, os trabalhadores
e os setores de menores recursos, que são a maioria esmagadora da população.
Esse
modelo econômico é incompatível com o aperfeiçoamento democrático, com a
universalização da cidadania e dos direitos sociais e com a redução das
assimetrias de renda, riqueza e oportunidades ainda vigentes. Ele não cabe na Constituição de 1988, é um
modelo de privilégios, para poucos. De ser implantado, condenará o Brasil à
condição de mero território de expansão e realização de lucros do capitalismo
global, com a regressão do seu processo de desenvolvimento, a
desindustrialização da economia, a exacerbação do rentismo e o agravamento dos
fenômenos de exclusão e desigualdade social. O que, obviamente, não exclui que
setores que hoje financiam e apoiam o assalto à República multipliquem
substancialmente suas rendas e engordem suas contas nos paraísos offshore…
*Economista,
ex-Cepal e ex-FAO
Fonte:
plataformapoliticasocial
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