Desde
o momento em que o Presidente da Câmara dos Deputados recebeu a denúncia de
impeachment contra a Presidenta da República Dilma Rousseff instaurou-se na
sociedade e, notadamente, no meio jurídico acirrado debate sobre a natureza
jurídica do impeachment e sua legalidade no caso. Ministros e ex-ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) foram chamados a se manifestar sobre o
impeachment, sua natureza e legalidade. De igual modo vários juristas, também,
se manifestaram através de artigos, pareceres e declarações sobre o tema.
Mesmo
para aqueles que entendem que a natureza do impeachment é predominantemente
política, para se evitar qualquer flerte com o golpismo, o julgamento deve ser
guiado pelos princípios fundamentais do direito, hipótese outra representaria
afronta ao próprio Estado democrático de direito. Seria, portanto, neste
contexto, inimaginável e igualmente absurdo o Parlamento julgar a Presidenta da
República por conduta que não esteja prevista em lei (princípio da legalidade)
como crime de responsabilidade.
O
princípio da legalidade – nullum crimen nulla poena sine lege praevia - é pedra angular do direito penal. Além de ser
um princípio constitucional limitador do poder punitivo estatal – o juiz só
poderá julgar de acordo com o que está previsto na lei e nos limites da mesma –
trata-se de o princípio político que remonta a separação dos poderes.
Sustenta-se
aqui, que o processo de impeachment tem natureza mista: política/jurídica.
Segundo a ministra do STF Carmem Lúcia o impeachment tem natureza política e
jurídica-penal. Sendo assim, mais do que nunca deve está restrito aos
princípios constitucionais, processuais e penais. Portanto, em hipótese alguma
poderá a Presidenta da República ser “impichada” sem que seja comprovado, sem
qualquer sombra de dúvida, a prática de crime de responsabilidade de acordo com
a lei.
Não
é despiciendo lembrar que não há uma definição precisa e determinada dos
“crimes de responsabilidade” que leve em conta os princípios fundamentais bem
como da dogmática penal.
Neste
particular, a taxatividade penal como corolário do princípio da legalidade é
afrontada. A incriminação vaga e indeterminada de certos fatos, deixa incerta a
esfera da licitude, comprometendo a segurança jurídica do cidadão. Na
realidade, a incriminação vaga e indeterminada faz com que não haja lei
definindo como delituosa certa conduta, pois, ao final, a identificação do fato
punível fica ao arbítrio do julgador¹.
Quando
a ministra Carmem Lúcia, ministro Dias Toffoli e outros afirmam que o
impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição da República, é
preciso apreender e fazer a leitura correta da afirmação. Não satisfaz neste
processo a previsão constitucional para afastar qualquer tentativa golpista. É
imperioso que o devido processo legal, contraditório e ampla defesa sejam
norteadores da decisão que será tomada pelo Congresso Nacional. No regime
presidencialista a insatisfação popular não pode por si só levar ao impeachment
do governante máximo do país.
Para
o respeitável professor de direito público da UnB Marcelo Neves, “a DCR 1/2015,
recebida pelo Presidente da Câmara dos Deputados, é inconsistente e frágil,
baseando-se em impressões subjetivas e alegações vagas. Os denunciantes e o
receptor da denúncia estão orientados não em argumentos jurídicos seguros e
sustentáveis, mas sim em avaliações parciais, de caráter partidário ou espírito
de facção. Aproveitam-se de circunstanciais dificuldades políticas da
Presidente da República em um momento de grave crise econômica, desconhecendo,
estrategicamente, o apoio que ela vem dando ao combate à “corrupção” e a sua
luta diuturna para conseguir a aprovação de medidas contra a crise econômica no
Congresso Nacional. Denunciantes e receptor afastam-se não apenas da ética da
responsabilidade, mas também de qualquer ética do juízo, atuando por impulsos
da parcialidade, do partidarismo e da ideologia, em prejuízo do povo
brasileiro”.
De
igual modo, como já referido, não se pode marginalizar os princípios da
legalidade e da taxatividade em matéria penal.
Neste
sentido, valioso o parecer cientifico apresentado pelos consagrados professores Juarez Tavares e Geraldo Prado, in verbis, in verbis: “As pressões pela ‘flexibilização
dos mandatos presidenciais’ via ampliação das hipóteses de impeachment, para
abranger situações não enquadráveis, taxativamente, no art. 85 da Constituição
– ou ainda para alargar o conceito de ‘crime de responsabilidade’ – atentam
contra o significado da proteção constitucional ao voto direto, secreto,
universal e periódico. É neste sentido que Martinez investe contra o que
denomina como “tergiversação jurídica”, que afeta a segurança jurídica do
sistema democrático ao permitir o emprego do “juízo político” “como um
mecanismo de responsabilidade política, de controle da atuação cotidiana do
presidente” e termina por afirmar tratar-se de um recurso inconstitucional. No
Brasil a questão ganha contornos mais delicados dado o fenômeno que os
cientistas sociais observam, relativamente a ‘atitudes ambivalentes perante a
democracia’. “
Continuam os eminentes juristas: “O estudo de caso de emprego abusivo do “juízo político”
na América Latina aponta para algumas condutas comuns, em particular, mas não
exclusivamente, em processos que chegaram à Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Em geral o abuso de poder concernente ao impeachment pode ser
constatado pela: a) deliberada não aplicação dos critérios dogmáticos de
definição dos “crimes de responsabilidade”; b) violação sistemática das
garantias do devido processo”.
É
necessário atentar que embora caiba ao Congresso Nacional, conforme já dito,
processar e julgar a Presidenta da República deve tanto a Câmara dos Deputados
quanto o Senado Federal se submeterem aos princípios constitucionais, as leis e
as normas pertinentes à matéria. Forçoso ressaltar, ainda, que diante de um
Estado de direito - que originariamente apresentava como características
básicas: i. submissão ao império da lei; ii. separação harmônica dos poderes;
iii. enunciado e garantia dos direitos individuais² - a “voz das ruas” por mais
sedutora que seja, principalmente, para parlamentares, não pode em hipótese
alguma suplantar o direito e as leis.
Por
tudo, o pretendido impeachment da Presidenta da República Dilma Rousseff é
golpe. Golpe porque não há crime de responsabilidade; golpe porque a “voz das
ruas” amplificada pela mídia não está
acima da lei e nem da “voz das urnas”; golpe porque pretende transformar uma
insatisfação momentânea e política em motivos irracionais, políticos e
passionais para derrubar a Presidenta eleita com cerca de 55 milhões de votos;
golpe porque há um inegável processo de criminalização da Presidenta Dilma, do
ex-presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores; por fim, é golpe porque não
está de acordo com a lei, com o direito e com a justiça.
_______________________
¹FRAGOSO,
Heleno Claudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense,
1991.
²
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2003.
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e
professor de Direito Penal da PUC-Minas.
Fonte:
ConJur
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