O
golpe é para acabar, com um só golpe, com três grandes legados sociais e políticos do Brasil: o legado de Lula, o
legado de Ulysses Guimarães e o legado de Getúlio Vargas. Não é exagero, não é
invenção. É o que está escrito no programa econômico do golpe de Michel Temer e
Eduardo Cunha, o documento “Uma Ponte Para o Futuro”, divulgado há poucos meses
Por
Lindbergh Farias e Marcelo Zero*
O
golpe é para acabar, com um só golpe, com três grandes legados sociais e políticos do Brasil: o legado de Lula, o
legado de Ulysses Guimarães e o legado de Getúlio Vargas.
Não
é exagero, não é invenção. É o que está escrito no programa econômico do golpe
de Michel Temer e Eduardo Cunha, o documento “Uma Ponte Para o Futuro”,
divulgado há poucos meses.
O
título é evidentemente enganoso. Não se trata de uma “ponte para o futuro”.
Trata-se de uma “pinguela para o passado”.
E não é um passado recente; é um passo longínquo, bem atrasado.
Com
efeito, o programa ultraliberal de Cunha/Temer, criticado até mesmo por FHC por
seu caráter excessivamente liberalizante, pretende desconstruir uma longa série
de políticas e direitos que asseguram à população e aos trabalhadores de hoje
alguma possibilidade de terem uma vida digna.
Não
se trata apenas de revisar as políticas sociais que o PT implantou e seu
programa neodesenvolvimentista. Não se trata somente de voltar ao status quo
ante do neoliberalismo que vigia na época do tucanato. É muito pior. A ideia
aqui é desconstruir toda uma arquitetura histórica de direitos sociais e
mecanismos econômicos que, bem ou mal, apontam para a criação de um capitalismo
minimamente civilizado no país.
A
ideia é nos levar de volta à República Velha, na qual a questão social era
simples caso de polícia.
Para
isso, a pinguela para o passado de Cunha/Temer aponta suas baterias não apenas
contra o legado social de Lula, mas também contra a Constituição de Ulysses
Guimarães e a CLT de Getúlio.
A
Constituição de 1988 era chamada por Ulysses de Constituição Cidadã porque,
segundo ele, “assegurava aos brasileiros direitos sociais essenciais ao
exercício da cidadania e estabelecia mecanismos para garantir o cumprimento de
tais direitos”.
A
própria inserção dos direitos sociais como segundo título da Constituição,
atrás apenas dos direitos individuais e coletivos, já revelava essa intenção
dos parlamentares que elaboraram a Carta.
Além
de ter reduzido a jornada de trabalho para 44 horas, consagrado a
irredutibilidade dos salários, assegurado o direito de greve e o direito ao
salário mínimo real capaz de assegurar uma sobrevivência digna, a nova Carta
também constitucionalizou outros direitos sociais, como saúde, educação,
proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
Com
a nova Constituição, a assistência médica e farmacêutica deixou de ser
benefício previdenciário e passou a ser direito social, garantido pelo Estado a
todos os brasileiros, independentemente de contribuição previdenciária. A
universalização do ensino fundamental público, a oferta obrigatória de educação
infantil pelo Estado e o crescimento da oferta do ensino médio são alguns dos
aspectos educacionais constitucionalizados. Ao mesmo tempo, a Carta de 1988
procurou assegurar o cumprimento desses direitos, estabelecendo vinculação de
receitas orçamentárias, especialmente para a saúde, a educação e as políticas
sociais.
Esse
foi o grande legado social de Ulysses Guimarães, a maior figura histórica do
PMDB.
Pois
bem, Cunha e Temer querem acabar com isso, estabelecendo a desvinculação dessas
receitas. Eles querem o que se chama de “orçamento de base zero”, isto é, a
desvinculação total de todas as receitas e gastos sociais existentes. Assim, não haveria mais pisos constitucionais
mínimos para saúde, educação e outras despesas sociais.
A
consequência imediata é que as ações públicas nas áreas da saúde, educação,
previdência, assistência, geração de emprego e renda, habitação, saneamento e
transporte público não teriam mais continuidade de longo prazo. Tudo ficaria ao
sabor de avaliações “técnicas” feitas por um conjunto de tecnocratas.
Trocando
em miúdos: após se pagar a dinheirama bilionária para cevar bancos e rentistas
e se fazer um grande superávit primário, se decidirá se há ou não recursos para
pagar a saúde e educação devida aos brasileiros. Se não tiver, não se paga ou
se reduz bastante.
A
consequência principal, além da consequência imediata, é que todos os programas
sociais relevantes serão precarizados. Não se trata apenas do Bolsa Família, do
Mais Médicos e de outros programas implantados pelo PT. É tudo mesmo. Afinal, a
prioridade do programa Cunha/Temer é usar o dinheiro de nossos impostos para
assegurar a remuneração do sistema financeiro. Para o social, restarão as
sobras.
Em
vez de uma Constituição Cidadã ou Social, como queria Ulysses, teremos uma
Constituição Empresarial ou Financeira.
Na
realidade, a intenção última aqui é abrir o caminho para um velho sonho dos
nossos conservadores, os quais nunca esconderam sua aversão à Constituição “que
aumentou os gastos públicos”: privatizar saúde, educação, previdência e demais
serviços públicos. O que eles querem mesmo é acabar com a universalização
desses serviços e focar gastos mínimos apenas nos miseráveis. A universidade
pública e o SUS serão as primeiras vítimas.
Mas
além de destruir legado social de Ulysses Guimarães, o programa Cunha/Temer
também quer destruir o legado de Getúlio Vargas.
Por
isso, o programa Cunha/Temer determina que “as convenções coletivas prevaleçam
sobre as normas legais”. Em outras palavras, querem acabar com a proteção
trabalhista assegurada pela CLT de Getúlio Vargas. Ora, nas relações
trabalhistas, o poder de barganha do capital é muito maior que o dos
trabalhadores. Sem a proteção substancial da lei, a tendência inexorável é que
o mercado de trabalho fique mais terceirizado e precarizado. Inevitavelmente,
os rendimentos dos trabalhadores serão comprimidos e o poder dos sindicatos
será fragilizado, revertendo todo o ganho alcançado nos últimos anos.
Para
completar a obra no campo do trabalho, o plano Cunha/Temer pretende rever a
política de valorização do salário mínimo implantada nos governos do PT, vetor
de fundamental importância para a dinamização do mercado interno de massa. Não
satisfeitos, Cunha e Temer também propõem o fim, no orçamento, “de todas as
indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais”. Com
tal medida, todas as aposentadorias, pensões e outros benefícios
previdenciários ou assistenciais serão devidamente achatados.
Moreira
Franco, outro responsável pelo plano, já fala em concentrar os programas
sociais, inclusive o Bolsa Família, somente nos 10% mais pobres. Segundo ele, o
Minha Casa Minha Vida não poderia contar mais com aportes do FGTS,
convertendo-se de maior programa habitacional do mundo a um programa
habitacional qualquer restrito à classe média, e o Fies, o Prouni e o Pronatec
seriam reduzidos. Seria o início de um pacote infindável de maldades. Voltaríamos à era dos tristes pacotões
impopulares.
Evidentemente,
nada disso seria necessário para se equacionar os desequilíbrios fiscais do
país. Afinal, os orçamentos somados do Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida,
abono salarial, seguro desemprego, Educação e Saúde não alcançam R$ 300
bilhões, ao passo que os gastos com juros da dívida superaram R$ 500 bilhões,
em 2015. Assim, não são os gastos sociais que desequilibram as contas públicas,
são os gastos financeiros.
A
“culpa” não está no legado social de Lula, Ulysses e Getúlio. A culpa reside na
voracidade de nosso rentismo, que o programa Cunha/Temer pretende cevar ainda
mais com um ajuste fiscal mais restritivo e taxas de juros estratosféricas.
A
questão essencial aqui é a de sempre: quem vai pagar pela crise? Cunha e Temer
querem que o custo da crise recaia sobre os trabalhadores, os aposentados e a
população que depende dos serviços públicos. Aparentemente, esse é o preço que
eles terão de pagar para que os “investidores privados sejam devidamente
estimulados”.
Completando
a obra regressiva do programa, há o retrocesso no plano internacional. Com
efeito, Cunha e Temer querem acabar também com política externa altiva e ativa,
que deu ênfase à integração regional, às parcerias estratégicas com outros
países emergentes e à cooperação Sul-Sul. A ideia essencial, nesse plano
externo, é acabar com o Mercosul e ressuscitar a finada ALCA, aderindo a acordos
comerciais amplos e assimétricos, como os relativos à Parceria Transatlântica e
à Parceria Transpacífica, que tenderiam a arruinar a produção nacional,
especialmente a da nossa indústria. A
subalternidade às potências tradicionais voltaria a imperar, complementando a
fragilização interna.
A
cereja do bolo seriam o pré-sal e outros patrimônios públicos do Brasil, que
seriam vendidos a preços de banana, quando instaurada a republiqueta de bananas
do golpe.
Esse
programa é um desastre para a população mais necessitada. Mas não apenas para
ela. É um desastre também para o Brasil. Numa conjuntura de baixo crescimento
do comércio mundial e de fim do ciclo das commodities, seria imprescindível a
manutenção de um dinamismo do mercado interno pela via do combate à pobreza, da
distribuição de renda e do crédito popular. Algo que só os legados sociais que
Cunha e Temer querem destruir poderiam propiciar. Assim sendo, o programa da
pinguela para o passado só agravaria nossos desequilíbrios e nos afundaria numa
recessão muito mais profunda e duradoura.
Nesse
ambiente golpista que configura clara ameaça ao Estado Democrático de Direito e
aos direitos e garantias individuas, a desconstrução desses legados sociais e
dos direitos sociais e econômicos a eles vinculados completaria a tarefa de nos
fazer regredir a estágios históricos que julgávamos superados.
A
combinação altamente tóxica de golpe político, fragilização da democracia e
regressão social geraria um quadro, no qual a demonização do Estado de Bem
Estar, das políticas sociais e das esquerdas se entrelaçaria com a
marginalização das forças progressistas do país, dos movimentos sociais, dos
defensores dos direitos humanos e das minorias e dos sindicatos dos
trabalhadores.
Como
nos velhos tempos de Washington Luis, a “questão social” voltaria a ser caso de
polícia. Para compensar, com a hegemonia do fisiologismo parlamentar que o
golpe traria, a corrupção deixaria de ser caso de polícia, como almejam
fervorosamente Cunha et caterva.
O
golpe é República Velha nas veias abertas do Brasil!
Lindbergh
Farias é senador pelo PT-RJ e Marcelo Zero é sociólogo
Foto
de capa: Antônio Cruz/ABr
Fonte:
revistaforum
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