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A farsa da pátria armada

Nem todos vão saber a diferença entre uma bravata eleitoral e uma incitação ao extermínio (Arte: Andrea Freire/Revista CULT)


“Filha do medo, a raiva é mãe da covardia” (Caravanas, Chico Buarque)

Para quem já assistiu a algumas aulas sobre processo legislativo e não desconhece a hierarquia das normas, deve ter soado estranho ver um decreto profundamente belicista regulamentando o Estatuto do Desarmamento. Como imaginar que um decreto, que tem apenas a função de permitir que a lei seja cumprida, explicitando seus requisitos, seja editado como uma forma inequívoca de esvaziá-la?

Trata-se de um caso típico de desvio de finalidade –tema que o Supremo Tribunal Federal vem ingressando com muita voracidade nos últimos tempos. Basta lembrar que históricas competências privativas do presidente da República como nomear ministros, autorizar extradição e decretar o indulto foram seguidamente restringidas pela Corte. No caso das armas, a hipótese é muito mais simples. Trata-se de uma competência que o presidente, por mais popular que seja, não tem e nunca terá na democracia, que é a de mudar a lei sozinho.

Se a lei exigiu a demonstração de uma efetiva necessidade, que cabe à administração avaliar (justamente para não vulgarizar a posse, um dos objetivos do desarmamento), o decreto poderia discriminar a forma de prová-la ou os requisitos exigidos para cada situação. Mas daí a presumir a efetiva necessidade vai uma longa distância. Na verdade, uma enorme contradição.

Se a necessidade deve ser “efetiva”, segundo a lei, não pode ser simplesmente “presumida” pelo decreto. O que precisa de demonstração não se pode dar como provado, pura e simplesmente. E, ademais, uma presunção com base em um requisito apenas simbólico, como os índices de homicídios. A sistemática foi escolhida, numericamente inclusive, para não afastar nem um só dos habitantes deste país, da necessidade de se armar.

O decreto permitiu mais do que a lei permitia e, portanto, alterou frontalmente o sentido dela, que era o de limitar a posse. Há quem diga que esta é a vontade popular dos novos tempos, porque o presidente eleito sempre defendeu esse tema, o que é uma verdade. Mas pesquisas recentemente publicadas apontam que a maioria dos brasileiros tem posição inversa, contrária à liberalização da posse (61%, segundo os últimos números do DataFolha).

De toda a forma, para colocar à prova a legitimidade de seu discurso, caberia ao governo encaminhar um projeto de lei para o Congresso. Poderia chamá-lo pomposamente de Estatuto do Armamento –ou Armamento Sem Partido, pouco importa. Isso faria parte da democracia e do processo legislativo também. O que não faz é editar o decreto da “pátria armada”, e, sob o pretexto de completar a lei, mudar totalmente o seu sentido.

A questão está longe de ser enclausurada dentro do jurídico. É na política criminal que a farsa se acentua.

Não há um único indicativo de quem trabalhe com a segurança pública de que um maior armamento das pessoas possa auxiliar, de alguma forma, o serviço dos agentes da lei. Mais acidentes, mais letalidade nas agressões domésticas e pessoais, mais reações perigosas nos crimes (o que todos os especialistas recomendam, de forma uníssona, a jamais fazer). De sobra, mais armas estarão à disposição dos roubadores, dentro das casas –de onde saem parte significativa das armas para o mercado ilegal.

Todas as pesquisas realizadas, aliás, apontaram o decréscimo dos níveis de homicídio com o desarmamento, no Brasil. Segundo o Mapa da Violência, 134 mil mortes foram poupadas desde então, o que não é nada pouco, mesmo para um país violento como o nosso. Para o ministro da Justiça, Sérgio Moro, todavia, “essa questão de estatística é sempre um tema controvertido”.

Não há especialistas que sugiram o armamento da população para reduzir crimes –quando muito alguns adeptos das vertentes menos ilustradas de teorias da conspiração. Não há estudo que aponte qualquer vantagem para a segurança pública –no máximo, a lembrança persistente do direito às armas na sociedade norte-americana, cada vez mais questionável, pelos trágicos resultados que seguidamente tem provocado.

É com base em premissas vazias, como a de que o desarmamento apenas atinge aos “cidadãos de bem”, não aos malfeitores, que se sustenta essa ideologia, que enfronha a arma como uma continuação da propriedade –com todos os percalços da sociedade patriarcal que isso representa, em especial para a proteção das mulheres, as principais vítimas das agressões. Na verdade, é justamente a posse da arma que muitas vezes transforma esse tal “cidadão de bem” em criminoso.

O ministro Moro, verdade seja dita, tinha uma posição mais moderada. Teve de engolir o decreto que possibilita largamente a posse de não uma ou duas, mas de quatro armas de fogo por pessoa –quase uma queima de estoque legal. Neste episódio, viu-se claramente que sua função no governo não será de aconselhar o poder, mas de legitimar suas ações, com o prestígio que o papel de ex-juiz que fornece.

Ele mesmo não desconhece isso. Em entrevista recente, condensou em poucas palavras a importância do populismo penal para o neoliberalismo. Assim, o portal Jota resumiu a questão a ele proposta: “Moro faz uma ligação entre os dois lados do governo. Diz que aprovar medidas com apoio popular (como leis penais) mobiliza capital político que pode ser usado para reformas vistas como menos populares, como a reforma da Previdência“.

Dar ao público espetáculo, e fomentar uma ilusória sensação de segurança, com imposição de mais penas e mais prisões, pode facilitar a anuência dos cidadãos à retirada de seus direitos trabalhistas ou previdenciários. Podemos não concordar com a ideologia, mas devemos reconhecer a sinceridade em expor as nervuras populistas desse Estado liberal-autoritário. Loic Wacquant não o teria feito com a mesma precisão.

Mas há uma outra questão que parece ainda mais preocupante do que os efeitos perversos para a segurança pública –o que, aliás, o recrudescimento penal já vai fazer de forma intensa: é o risco para a democracia.

A veiculação de ideias de que as minorias devem se curvar às maiorias; de que as ideologias diferentes devem ser excluídas da sociedade; de que os adversários, os militantes, os ativistas, enfim, devem ser banidos, é repetida cotidianamente de forma indistinta entre políticos saídos do palanque e administradores recém-empossados. Um inusitado consenso de campanha e gestão de que é necessário extirpar o “marxismo cultural” e destroçar a “ideologia de gênero” –seja lá o que se tenha pretendido dizer com essas palavras de ordem que são, na verdade, comandos para a guerra.

A equação de discriminação mais ódio já é por si só nitroglicerina pura –como temos visto com o crescimento exponencial da homofobia. Mas quando ao discurso agressivo se soma a vulgarização da posse de arma, a situação se torna ainda mais delicada. Nem todos vão saber a diferença entre uma bravata eleitoral e uma incitação ao extermínio. A chance de reproduzir milícias que desnaturem por completo a discussão política não é nada desprezível.

Não é de hoje que a criação de inimigos públicos -o comunismo, o globalismo, o estatismo etc- que poriam em risco à ordem social, e por isso mesmo exigiriam repúdio violento, é uma forma eficaz de dominação. Diferentes experiências políticas, ao longo do tempo, se nutriram de monstros debaixo da cama e cultivaram esqueletos em armários. Exigiram lealdade e venderam violências sob o manto da proteção. Ao final, produziram, sobretudo, cadáveres.

Acirrar os ânimos políticos e ao mesmo tempo popularizar as armas de fogo pode não ser a melhor aposta de política pública para os dias que virão.

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

Fonte: revistacult

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