AGORA ESTOU EM PAZ (O QUE EU TEMIA CHEGOU)

Por Danilo Otoni

Nossos sentimentos ao acordar variam conforme os momentos mais frescos em nossas memórias. Quando despertamos com um sonho bom fazemos até esforço para ficar um pouco mais na cama, curtindo aquela sensação de alegria e, por que não, esperança. Assim como fazemos de tudo pra esquecer os terríveis pesadelos que anuviam nossas recentes lembranças. Porém, existem os mais materialistas (que se autodenominam práticos) que dizem não poder perder tempo com devaneios (que eles denominam baboseiras). Tudo bem. Concordo que viver é melhor que sonhar, só que não são ações excludentes.

Também já me disseram que a história se repete como farsa. Há metáforas e paradoxos nesta frase, até porque a humanidade é muito desumana para conseguirmos andar em linha reta. Gostamos de imitar o cachorro seguindo atrás do próprio rabo, por isso repetimos, apenas mudando as máscaras, os mesmos passos de nossos antepassados. Pois ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Pois bem. Infelizmente, desisti. Não há normalidade neste país grande e bobo. É impossível apresentar uma ideia sem ser taxado de algo. Viramos a nação do "tudo isso é isso e tudo aquilo é aquilo". Perdemos a aceitação do contraditório e nos escondemos dentro da nossa redoma para agirmos como leões virtuais, pois assim nos sentimos importante para muitos num planeta onde estamos cada vez mais sozinhos. Por isso, cuidado. Há perigo na esquina.

Dias atrás, uma mulher sonhava. Imaginava um lugar onde as pessoas pudessem conviver de peito aberto, numa mistura de cores, gêneros, pensamentos, desejos e classes. Onde a discrepância entre o ser e o ter fosse diminuto, com as diversas vozes sendo ouvidas na mesma intensidade, com a não diferenciação entre crimes de esquerda ou de direita, já que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. Enfim, sonhou e queria, ternamente, dormir mais um pouco. Mas foi acordada aos tiros. Ela era negra.

Cotidianamente acontecem crimes como o que aconteceu com Marielle, a quinta vereadora mais bem votada da segunda maior cidade do Brasil. Obviamente que a comoção acompanha a publicidade. E quem usa o argumento de crime comum tentando diminuir a morte de uma pessoa pública está, contraditoriamente, utilizando a mesma defesa ideológica pela qual Marielle lutava - igualdade para todos. Se já não bastasse passarmos vergonha por sermos odiosos, agora bancamos o idiota por sermos intelectualmente desonestos. Na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais.

Voltamos aos anos trinta. Não com saudosismo, mas com o vil sentimento que criou os piores monstros da história terrestre. Temo pelo pior, pois o novo sempre vem. E será que dormimos demais? Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais? A ruptura que o golpe democrático estabeleceu no Brasil não é causa, mas consequência da nossa abjeção. Desconstruir é o caminho mais fácil para quem perdeu a glória de chorar. E de sonhar.

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Danilo Otoni