POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
Num país polarizado como o nosso, juízes, em boa parte, ou se tornaram moralistas irascíveis na persecução penal, não fazendo concessões a garantias processuais, ou passaram a reagir frouxos feito bola de gude em boca de banguela, abandonando quaisquer critérios, para decidir ao sabor da ocasião e da cara do freguês.
Difícil é, em nossos dias, encontrar o magistrado equilibrado, que respeita a soberania popular no critério da lei, ora para endurecer, ora para preservar algum pragmatismo para garantir julgamento justo de cada um segundo suas especificidades pessoais.
Com o golpe parlamentar, perdemos o sentido da segurança jurídica. Os julgados se converteram em gritos de guerra, espaços em que a visão individual do julgador atropela o interesse público: juízes ou são do tipo ferrabrás que decretam o estado bélico contra tudo que lhes pareça leniente, ou são oportunistas que mobilizam sua artilharia contra as normas postas para beneficiar este ou aquele réu.
Não há meio termo, não há o uso da razão na aplicação da lei. Usa-se com mais frequência o fígado, a bronca contra os que pensam diferente de si.
De um lado, temos, hoje, os Moros e os Glaucenires da vida, heróis em causa própria; do outro, Gilmar Mendes e sua jurisprudência de ocasião. Cada um tem sua claquete.
A de Moro e de Glaucenir se confunde com a de Bolsonaro e a de Gilmar está mais para uma metamorfose ambulante: quando mira os petistas com uma bronca de fazer Moro corar, a direita vibra; quando se fantasia de garantista, a esquerda intelectual o vê como tábua de salvação no mar de fascismo revolto.
Previsíveis são apenas juízes do tipo Moro ou Glaucenir. Não que com isso façam genuflexão para a segurança jurídica. A insegurança de todas e todos é sua marca principal: ninguém escapa de suas gadanhas. O primeiro a ser agredido é o Estado de Direito e suas garantias constitucionais. Na guerra contra a “corrupção”, não valem nada. A perspectiva de ser qualquer um colhido pelo arbítrio, como por um raio em céu de brigadeiro, é o que torna esses juízes todo poderosos.
Com Gilmar, depende. Trabalha sempre como bom jogador de buraco. Não desdenha as cartas do lixo, pensando na canastra futura. Para fazer ativo jurisprudencial a ser usado em caso de algum amigo precisar, mostra-se benevolente com os inimigos.
Isso explica por que é capaz de soltar José Dirceu, como solta Aécio Neves. Como bom constitucionalista que é, sabe que benefícios extraordinários só conseguem se legitimar na aparência de alguma isonomia.
Não que a queira, mas porque dela precisa para arrancar seus corrompidos das gadanhas dos Moros e dos Glaucenires da vida. Liberar José Dirceu, para ele, não passa de indesejável, porém inevitável dano colateral. Se pudesse garantir a Aécio o Nirvana e mandar José Dirceu para o inferno, estaria no mundo que pediu a Deus.
É bom lembrar que o golpe, de que Gilmar foi um dos articuladores, se alimentou dessa bipolaridade social, só por vezes escamoteada na intenção de aprofundar, jamais de afrouxar o golpe.
Acreditar em Gilmar é tão temerário quanto acreditar nos juízes justiceiros. São as duas faces da mesma moeda, a que comprou a degeneração de nossas instituições e permitiu que o arrastão de trombadinhas se alojasse no Planalto. Se hoje esse articulador do golpe está de bem com as garantias constitucionais, é pela necessidade de acercar os seus do poder e, logicamente, afastar dele os que foram expulsos pelo uso fraudulento do impeachment.
Não que as contradições do golpe não mereçam ser exploradas, mas a guerra aberta por Moros e Glaucenires contra Gilmar não merece nosso aplauso, do mesmo jeito que o revide de Gilmar no CNJ contra os justiceiros não é uma briga das forças democráticas.
A estas, compete assistir ao embate, sem nele se tornarem atores. Os que são brancos, que se devorem. Não há, aqui, uma luta do bem contra o mal ou vice-versa. Há duas expressões do corrompimento institucional a se degladiarem. Só isso.
Sobra para a sociedade, nessa decadência de um judiciário que quer desapropriar a política dos políticos, a certeza da necessidade de ampla revisão do quadro constitucional que restabeleça a soberania popular e imponha a responsabilização tanto dos que se portam com excesso de poder e falta de decoro na função judicante, quanto os que desta se aproveitam para desequilibrar o jogo democrático a favor deste ou contra aquele ator político de sua predileção ou de sua bronca.
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