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A POTÊNCIA E OS LIMITES DA CONSCIÊNCIA NEGRA



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“Contra o racismo, o genocídio: por um projeto política de vida para o povo negro”. Esse é o lema da 14° Marcha da Consciência Negra, organizada pelo movimento negro na cidade de São Paulo. A concentração do ato tem início às 13h no MASP, Avenida Paulista, e segue até o centro, próximo ao Teatro Municipal.

Protestos com o mesmo título são comuns em todo o Brasil. Um dos movimentos sociais mais antigos da história brasileira, o negro, começou a usar essa ideia a partir de 1971, quando o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul organizou o primeiro ato no 20 de Novembro, em homenagem ao Quilombo dos Palmares, ao líder Zumbi, e pela consciência negra.

Clamar pela consciência negra era negar o 13 de Maio, data da abolição da escravatura em 1888, como a data principal a ser recordada pela comunidade negra. De acordo com esses ativistas, o 13 de Maio coloca o negro como objeto da história, como passivos diante da suposta bondade da Princesa Isabel, enquanto o 20 de Novembro ressalta a força de luta e resistência desse grupo durante a história.

Deivison Nkosi, professor de inserção social da Unifesp, acredita que essa foi uma ótima estratégia do movimento negro, porque reuniu uma referência nacional, o Quilombo dos Palmares e o guerreiro Zumbi, e o ideal da consciência negra.

“Quando o movimento negro da época elege o 20 de Novembro como o dia da Consciência Negra é uma grande sacada, porque eles estão traduzindo uma discussão que está posta na modernidade, que é o racismo. Trazer o Quilombo dos Palmares como uma referência, falar em Zumbi, ao invés da Princesa Isabel coloca o jogo político em outros termos. Qualifica a luta, porque apresenta o negro como sujeito da sua própria emancipação, e é exatamente isso que o Steve Biko estava falando, mas isso vai ser feito a partir de referenciais que nos dizem respeito”.

O Alma Preta produziu duas reportagens para apresentar ao público as origens do 20 de Novembro, e também explicar o que é essa tal “consciência negra”. Para isso, vamos conhecer a história de Steve Biko, ativista Sul Africano responsável por criar essa ideia, as origens do termo na história do movimento negro brasileiro e entender as potências e os limites da consciência negra para enfrentar o racismo e as desigualdades no Brasil.
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Foto:Divulgação/ Instituto Cultural Steve BikoMais

Quem foi Steve Biko

Steve Biko é um dos principais nomes na história internacional do movimento negro e anti-colonial. Ele nasceu em 18 de Dezembro de 1946 e foi torturado e assassinado pelo Apartheid em 12 de Setembro de 1977, aos 30 anos de idade.

O ativista foi um dos principais nomes na luta contra o Apartheid e foi um mobilizador da juventude negra daquele país. Enquanto era estudante de medicina, formou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos, cuja sigla em inglês significa SASO.

O nome de Steve Biko é recordado e utilizado por organizações sociais em todo o mundo. Em Liverpool, Inglaterra, a Associação Steve Biko para Sem-Teto recebe grupos sociais marginalizados, e na África do Sul há a Fundação Steve Biko, que desenvolve programas de combate às desigualdades raciais.

No Brasil, no dia 31 de Julho de 1992, um grupo de estudantes negros iniciaram um projeto na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e construíram o Instituto Cultural Steve Biko. A proposta era construir um grupo com o objetivo de enfrentar o racismo por meio de ações concretas, com a educação e a formação de jovens negros para a entrada na universidade.

George Oliveira, Gestor administrativo do Instituto Cultural Steve Biko e mestre em economia, acredita que o líder “representa uma luta frente às ideias eurocêntricas e racistas da sua época”. Para ele, Biko carrega consigo as características de um líder que dedicou a vida por uma causa.



“Steve Biko era persistente, visionário e leal ao que acreditava”.

O primeiro passo da consciência negra

Steve Biko deixou como seu principal legado na luta contra o racismo no mundo o ideal da consciência negra. A obra do ativista “I write what I like” (“Eu escrevo o que eu gosto”, em português), reúne uma série de artigos escritos pelo intelectual durante a sua trajetória pessoal e política. Entre os textos, alguns explicam de maneira mais detalhada o que Steve Biko pensava sobre a consciência negra.

Um desses textos, um manifesto da SASO publicado em 1971, explica os fundamentos do movimento de consciência negra.

Para o ativista, ser negro não é apenas reflexo de uma pigmentação na pele ou de traços físicos negros, como a textura do cabelo, o formato do nariz, a grossura dos lábios. Essas características, suficientes para a pessoa ser uma “não-branca”, são insuficientes para definir a pessoa enquanto negra.

A aspiração e desejo de um negro de seguir o padrão branco faz com que essa pessoa também seja uma não branca. O corpo e a cor da pele preta se tornam empecilhos para essa mulher ou esse homem atingirem o ideal, que na sociedade ocidental é o branco.

Servir à polícia, por exemplo, transformaria um negro, de acordo com a visão de Steve Biko, em um não-branco.

Essa reflexão também foi empregada na África do Sul para a ação do Estado de cooptar lideranças negras. O Apartheid construía parlamentos que, mesmo sem o poder de decisão, tinham a participação de lideranças negras que, de acordo com Steve Biko, funcionavam para frear o ímpeto e a rebeldia da comunidade negra.

Esses, utilizados pelo Estado como forma de frear os avanços de negras e negros, eram também descritos como não-brancos.

A consciência negra para Steve Biko girava também em torno de um reconhecimento do racismo e da condição daquele sujeito enquanto negro na África do Sul. Descrever-se como tal era o primeiro passo no caminho da emancipação, de acordo com o ativista.

Márcio Farias, doutorando em psicologia social e educador no Museu Afro-Brasil, aponta para a consciência negra como uma ferramenta para a construção da subjetividade dessas pessoas.

“A consciência negra não é meio, ou metodologia para se alcançar o fim. A consciência negra procura produzir negros que não se enxerguem como meros apêndices da sociedade branca. Essa verdade não pode ser revogada e não se pode pedir desculpas sobre isso. O mundo branco tem construído uma série de indivíduos sem a consciência de que também são gente”.

A partir desse reconhecimento, a consciência negra motiva a compreensão da necessidade de que negras e negros trabalhem enquanto comunidade pelo fim do racismo e da servidão.

Esse reconhecer-se também passa pelo aceite dos valores, costumes e tradições, e pela reformulação da imagem do negro no campo da cultura, educação, religião e economia. A consciência negra é a possibilidade da comunidade negra ter orgulho dos seus valores, costumes, tradições.
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Foto: Divulgação/ Instituto Cultural Steve BikoMais

A percepção dessa ideia é a possibilidade da comunidade negra ter orgulho dos seus valores, costumes e tradições. Steve Biko destacava a importância de modificar a imagem do negro contada pela cultura, educação, religião e economia, de forma que a população tivesse outra postura diante do racismo e da dominação branca.

O enfrentamento às opressões raciais passava pelo entendimento de que, sim, havia um sistema branco de dominação que explorava a comunidade negra.

Lerato Seohatse, integrante da Steve Biko Foundation, descreve que, de acordo com Steve Biko, a dominação não era apenas uma questão política ou legal.

“Para ele, a dominação também opera no campo das ideias, valores, estética, entre outros”.

É nesse contexto que Steve Biko apresenta uma das suas frases mais memoráveis, “A arma mais potente do opressor é a mente do oprimido”.

Ele acreditava que para superar o racismo existente na África do Sul era preciso construir uma ideia oposta, de força e orgulho negro, capaz de ruir com o mito criado. A partir do choque entre essas duas propostas, o racismo branco e a consciência negra, seria possível chegar a uma síntese com face mais humana, e construir um país igual entre negros e brancos.

Os liberais brancos propunham uma visão “não racializada” de que todos eram iguais, independentemente da cor da pele, como forma de enfrentar o racismo. Steve Biko acreditava que essa posição não tinha a força suficiente para ruir com as opressões raciais na África do Sul.

A consciência negra é mais do que consciência

O conceito de Steve Biko da consciência negra tem duas faces. A primeira toca mais a pessoa e o seu interior, de se entender enquanto negra em meio a uma sociedade racista e marcada pelo colonialismo.

A segunda parte que compõe a consciência negra propõe uma crítica ao modelo econômico e ao Estado sul africano, criado sobre a exploração dos povos nativos, e formado para a manutenção das desigualdades raciais entre negros e brancos.

Para compreender essa ideia, é preciso se atentar às especificidades do processo de dominação na África do Sul.

O país tem uma diferença significativa dos demais do continente africano com relação à dominação do colonizador branco europeu. A inicial diferença diz respeito ao seu próprio processo de invasão que data dos séculos XVII e XVIII. Primeiro holandeses, depois alemães e franceses, que se juntaram e formaram os “Africanners”.

Os ingleses vão para a África do Sul em outro contexto, depois das guerras napoleônicas no continente africano, e mais próximos da divisão que seria feita no século XIX pelos europeus sobre a África, como parte da política imperialista.

A chegada dos ingleses ocorreu no Século XIX e configurou a entrada do quarto país europeu no território. Há uma divisão entre os ingleses e os “africanners”, traduzida em uma disputa política, territorial e econômica.

Durante esse processo, a Igreja Católica teve papel central. Representantes do clero foram enviados para fazer o contato com os residentes do território Sul Africano com o objetivo de “educar” e “civilizar” os “selvagens”.

Lerato Seohatse diz que a política de supremacia branca foi reforçada, e ainda é, pelo cristianismo na África do Sul porque representa os valores e as práticas das religiões africanas como demoníacas.

“O cristianismo envia uma mensagem para um inocente grupo de africanos, e de negros em particular, que eles ainda estão na base da evolução”.

Por isso a consciência negra enfrenta a colonização não só do presente, mas também do passado. A dominação europeia também agiu na reconstrução de um passado histórico. Os ativistas e intelectuais que tentavam recontar a história do negro, a partir das tradições africanas, eram rotulados como “causadores de problemas”, e “mentirosos”.

A modificação do passado foi utilizada como forma de dominação. Ingleses e holandeses construíram uma narrativa em que os Xhosas, uma das maiores etnias da África do Sul, teriam roubado os europeus. O ataque a essa etnia era uma “expedição de punição” àqueles que roubavam e praticavam algo antiético.

O líder dos Xhosas, o 19° profeta do grupo, foi preso no cárcere de Robben Island, onde ficavam os opositores à dominação europeia e ao Apartheid. Os líderes Xhosas, assim como as pessoas que compunham outras etnias, foram rotulados como tiranos e sanguinários.

Steve Biko destacava a necessidade da comunidade negra recontar a sua história: “a gente tem que reescrever a nossa história e produzir os heróis que formaram o coro da nossa resistência aos invasores brancos”.

Era preciso contar que a história da África do Sul não começa em 1652, com a chegada de Van Riebeeck na Cidade do Cabo, e que seria muita ingenuidade da população negra acreditar que os dominadores europeus construiriam uma história positiva sobre aqueles povos que eles queriam dominar.
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Foto: Acervo/Alma PretaMais

A luta contra o racismo e o colonialismo

O período foi marcado por derrotas para os dois grandes grupos étnicos da região, que se organizavam de maneira política e bélica para resistir ao colonizador europeu, os Xhosas e os Zulus.

As derrotas bélicas dos dois grupos fez com que parte significativa do século XX fosse marcada por lutas institucionais.

“A luta negra desde a chegada dos europeus sempre foi muito significativa e tinha um caráter bélico muito colocado. No final do século XIX até meados da segunda metade do Século XX, a gente vai ter uma forma de luta tentando encontrar brechas no campo institucional”, explica Márcio Farias.

Essa luta vai ganhar um peso importante no nível institucional. Mesmo que fosse a maior parte da população no território sul africano, 10% do território do país foi destinado a população negra. Ainda que restringida, a comunidade negra constrói algumas importantes instituições universitárias nesses locais.

As universidades vão dar o subsídio e formar parte dos líderes que enfrentaram o Apartheid na África do Sul. Ela alimenta as lutas pela via institucional contra o racismo e o colonialismo no continente africano.

É no ambiente universitário que Steve Biko adquire parte do conhecimento e da articulação política para se transformar em referência na luta contra o racismo e o colonialismo.

O intelectual e ativista desenvolve o conceito da consciência negra para além do âmbito pessoal ou identitário. Ser negro exigia o entendimento de que negras e negros eram discriminados e vítimas da tradição política, econômica, cultural e social da África do Sul, e que era preciso romper com o modelo vigente de Estado e sociedade.

Há uma forte evidência para o ativista de que a questão racial na África do Sul estava atrelada a fatores econômicos. O branco europeu construiu a ideia de inferioridade do negro para que pudesse o explorar sem qualquer questionamento no nível moral.

Steve Biko entendia que o negro foi o responsável pela construção da África do Sul, de todo o trabalho manual para a criação daquele país. Sem o acesso a terra ou aos meios de produção, trabalhou para o branco e gastou aquilo que recebeu para enriquecer as companhias dos descendentes europeus.

A criação dessa realidade constrói uma estrutura desigual de exploração e manutenção do negro na pobreza.

“Assim é caro ser pobre nos dias de hoje na África do Sul. São as pessoas pobres que ficam mais distantes do centro e portanto tem que gastar mais dinheiro no transporte para chegar e trabalhar para as pessoas brancas (…); São as pessoas pobres que não tem hospitais e assim são expostas às exorbitantes taxas cobradas por médicos privados”, afirmou Steve Biko.

Por isso ele exaltava a importância de um programa revolucionário, amparado pela consciência negra. De acordo com Steve Biko, não existia a possibilidade de um projeto reformista, porque reformar é de alguma maneira ainda manter parte daquilo que se modificara. E o fim do racismo e da dominação só seria possível a partir da ruptura total da ordem vigente.

A necessidade da consciência negra é fruto do racismo e do colonialismo na África do Sul. Essa consciência era a forma de responder a um problema criado não pelo negro, mas, sim, pelo branco.

Em uma sociedade não racializada, sem exploração e igualitária, não haveria a necessidade de se criar a ideia da consciência negra.

Sendo assim, a consciência negra era a materialização de que cabia à comunidade negra, vítima das opressões e da colonização europeia, ser a vanguarda de uma mudança social abrupta que possibilitasse uma vida mais humana a todos.

Além de propor mecanismos de defesa da identidade negra, Steve Biko questionou ativamente as diversas propostas de superação do Apartheid e integração do negro na sociedade sul-africana. Para ele, os liberais questionavam as políticas de segregação e as reservas de vagas para funcionários brancos porque queriam uma abertura ao mercado para que houvesse deliberada exploração da força de trabalho dos sujeitos negros.

“Essa é a integração do homem branco, uma integração baseada em valores da exploração”.

Dessa forma, a comunidade negra, originária naquele território, competiria entre si para atingir os valores brancos questionados pela consciência negra.

A ideia construída por Biko foi colocada como racista por uma série de pessoas, o que ele rebatia. “A gente não tem o poder de subjugar ninguém. A gente está apenas respondendo a provocação feita da maneira mais realista possível”, diz ele em seu livro “I write what I like”.

Deivison Nkosi, professor de Inserção Social da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), diz que a proposta de consciência negra de Steve Biko trabalha em duas frentes.

“De um lado o orgulho e a valorização, e do outro a mobilização pela luta concreta e política contra o sistema”.
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Foto: Acervo/Alma NegraMais

Consciência Negra e as lutas por liberdade no mundo e no Brasil

A influência de Steve Biko e dos líderes daquele país contra o regime do Apartheid cresceu de maneira orgânica, por conta das universidades sul africanas, como conta Márcio Farias.

“Nas décadas de 40, 50 e 60 muitos estudantes que passaram pelas universidades negras da África do Sul foram depois líderes e importantes figuras nas lutas de independência”.

Ele conta que a consciência negra influenciou os países do chamado 3° mundo, principalmente aqueles que compunham a chamada diáspora africana e sofriam da dominação feita pelo homem branco.

A África do Sul representou a ideia do pensamento pan-africanista de unir negros do continente e da diáspora africana, caso do Brasil e dos EUA, para uma luta conjunta contra a dominação europeia e a política de supremacia branca.

“É a primeira expressão de um diálogo imediato, de uma luta no território africano em conjunto da luta antirracista no mundo. Não era possível para a realidade da maior parte dos africanos da década de 1960 e 1970 essa discussão tão imediata. Não tinham e ainda hoje não têm a mesma experiência que os negros da diáspora. É uma espécie de unificação, partindo do objetivo específico de unificar um conjunto muito distinto de lutas que tem a mesma raiz”.

Vale lembrar que a luta antirracista e anticolonialista reverberava por todo mundo. Então, não era apenas a consciência negra quem influenciava os movimentos populares. No Brasil, havia uma admiração por parte do movimento negro com relação às lutas por independência na África e pelas lutas por igualdade nos EUA.

A ideia concebida por Steve Biko vai reverberar de maneira mais sólida no movimento negro a partir da década de 1970. Antes disso, tanto o Quilombo dos Palmares quanto Zumbi eram pouco divulgados ou conhecidos.

Há o registro de iniciativas que começaram a abordar os dois nomes nas décadas de 1920 em São Paulo, em 1930, em Pernambuco, e 1940 na Bahia. O reconhecimento dessas duas figuras ocorre a partir da década de 1970, mais precisamente em 1971, com o Grupo Palmares, criado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

No ano de 1974, o Ilê Ayê, bloco afro que surgiu em Salvador, é destacado como um dos principais movimentos do ciclo de consciência negra. Durante esse período histórico, essas organizações visavam construir um movimento negro de base popular. Nesse contexto, a expressão estética criada pelo Ilê Ayê foi determinante.

A consagração do 20 de Novembro na pauta do movimento negro foi marcada em julho de 1978, com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), principal organização política negra do Brasil na segunda metade do Século XX. O MNU também passou a pautar como data a ser recordada e debatida.

O professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Petrônio Domingues afirma que a mudança do 20 de Novembro marca a terceira fase do movimento negro depois da instauração da república.

O professor da Unifesp Deivison Nkosi diz que o 20 de novembro se transformou numa grande sacada por parte do movimento negro brasileiro. A data, recordação da morte de Zumbi em 1695, depois do ataque comandado pelo bandeirante Jorge Velho, traz um caráter nacional junto a um aspecto internacional, que é o imaginário da consciência negra, criada por Steve Biko.

“A mudança para o 20 de Novembro e a consciência negra qualificam a luta, porque apresentam o negro como sujeito da sua própria emancipação. É exatamente isso que o Steve Biko estava falando. E isso vai ser feito a partir de referenciais que nos dizem respeito. Você tem uma articulação entre o universal e o particular muito inteligente. O movimento negro elege a luta do Quilombo dos Palmares como o símbolo de resistência negra e o dia da Consciência Negra começa a ser identificado com Zumbi dos Palmares”.

A partir desse momento há uma série de mudanças, de acordo com Petrônio Domingues, na tradição do movimento negro brasileiro. Deixa-se de se utilizar a palavra “homem de cor” e “mulher de cor”, e se aceita o termo “negro”. O movimento, que antes tinha uma aproximação com a religião cristã, se aproxima das religiões de matriz africana. As organizações passam a condenar o discurso nacional pró-mestiçagem e passam a pregar pela constituição de famílias negras. Para o pesquisador Petrônio Domingues, o movimento negro a partir daquele momento “africanizou-se”.
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Os limites da consciência negra

Para entender os limites e a potência da consciência negra, é preciso compreender as particularidades do racismo em cada um dos países. Tanto na África do Sul quanto nos EUA houve a criação de um projeto de dominação por meio da segregação da comunidade negra.

Deivison Nkosi explica que no Brasil a dominação foi via assimilação, com a aposta na mistura pelo estupro de mulheres negras e indígenas pelo colonizador europeu, e pelo fortalecimento do culto à mestiçagem no país.

“Isso coloca uma dinâmica muito diferente para a própria manifestação do racismo, e também para a luta. Se a realidade que eu quero mudar é diferente, então a estratégia de luta também tem que ser”, explica Deivison.

O desafio ao dialogar com a consciência negra é entender de forma mundial o fato de racismo estar posto na modernidade, não só no Brasil, ao mesmo tempo em que entendemos as dinâmicas específicas do racismo à brasileira. Entender essas peculiaridades faz com que estratégias de luta consideradas eficientes em outros países não funcionem aqui, pelo fato da estrutura racista ter sido formada de outra maneira.

Deivison Nkosi resgata a psicanalista brasileira Neuza Souza, autora do livro “Tornar-se Negro” como uma aproximação em nível nacional da construção de uma consciência negra. Tornar-se negro para Neuza não é apenas uma descoberta, mas antes de tudo um dever de luta por uma emancipação de todas e todos.

“O objetivo da afirmação da consciência negra é a construção de uma verdadeira humanidade, como diria o Steve Biko. Por isso é tão preciosa essa formulação da Neuza Souza Santos, de tornar-se negro”.

Márcio Farias, doutorando em Psicologia Social, acredita que as limitações e a potência de Steve Biko ainda não estão postas. Ele reflete que as propostas do ativista sul africano não foram totalmente absorvidas pelos movimentos sociais.

Biko defendia uma ideia muito cara à comunidade negra no Brasil, a restituição da humanidade. O não entendimento do negro como um ser humano por completo é visto como uma das razões que permitem a sociedade brasileira aceitar o extermínio de jovens negros.

“Por isso que é consciência negra em busca da verdadeira humanidade”, conta Marcio Farias.

Steve Biko acreditava que a questão racial está para além da identidade, e que as lutas por moradia, saúde, vida, são lutas negras.

“Para ele, a pessoa não tem acesso à moradia por ser negro. Não acessa à terra por ser negro. O Steve Biko ainda não foi profundamente absorvido, no meu ponto de vista, pelo conjunto da militância, não só do movimento negro, da militância do movimento social de forma geral. É um autor que ainda precisa retornar pro conjunto das leituras básicas para todo aquele e aquela que lutam nos movimentos sociais”.

Apesar das limitações, é inegável o potencial inspirador de Steve Biko, uma das maiores referências internacionais do movimento negro. Em seu ponto de vista, a população negra “deve remover do nosso vocabulário de maneira completa o conceito de medo”.

A luta contra o racismo e o colonialismo, por meio do fortalecimento da consciência negra, era visto, e ainda pode ser considerado como tal na África do Sul, nos países da diáspora africana, e também no Brasil, como a possibilidade de colocar negros e negros na condição de conceder a essas nações uma face mais humana.




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