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Massacre em Manaus: até quando vamos fingir que nada está acontecendo?



Atuando na Vara das execuções criminais do Estado de São Paulo a partir de 1995 e na Coordenação da Assistência Judiciária da Casa de Detenção (Carandiru) em 1997 e 1998, lembro que, entre as autoridades do Estado, não se admitia a existência do que os presos chamavam de ‘partido ou facção’. Uma bobagem: no Estado de São Paulo não há descontrole sobre o sistema prisional, preso aqui não tem vez.
As condições de aprisionamento eram péssimas. Na Casa de Detenção, com cerca de sete mil presos, sabia-se que ocorria todo tipo de abuso contra e entre presos, tamanho era o descontrole. Torturas, matanças. Pagava-se por tudo: para ter cela, colchão, comer. Era a época ‘pré-facção’, havia crack nos presídios e, por consequência, muitos homicídios por não pagamento de dívida, muitos presos HIV positivo morrendo ao abandono. Tudo era desumano. No fim da tarde, ratazanas gigantes desentocavam e começavam a passear nos pavilhões, nas celas, nas comidas.
O que seria possível esperar de quem saísse daquele inferno após cumprir pena? O que fariam com a liberdade conquistada e o que fariam com a liberdade dos que os mantiveram lá e de toda a sociedade que os ignorou naquelas condições? O que se podia esperar deles? De que tipo de vingança seriam capazes?
Pois bem, eles não estavam organizando uma grande vingança. Estavam se organizando ‘apenas’ com o intuito de poder pleitear que os direitos mínimos dos presos fossem garantidos pelo Estado. Como se imaginassem que não tivessem tais direitos e, para tê-los, teriam que ter força, organizando-se, para pleiteá-los.
Durante esse período, os presos considerados ‘muito perigosos’ (por critérios indefinidos) eram mandados para o Centro de Readaptação Penitenciária de Taubaté (o CRP, Anexo ou Piranhão). Ali vigia o que nós Defensores chamávamos de ‘regime fechadíssimo’, não previsto em lei, mas com o qual convivia passivamente a maioria dos promotores e magistrados (de todas as instâncias) que atuavam nos processos de execução penal. Maioria, também, ressalte-se, então, de perfil extremamente conservador e punitivista.
O regime fechadíssimo consistia em cumprir pena em profundo isolamento em um local inadequado para por gente. E foi no Anexo, não por acaso, é óbvio, que foi idealizado e criado o Primeiro Comando da Capital (o PCC). Foi no CRP que o ‘estatuto do Partido’ foi escrito a mão com caneta esferográfica, com garranchos e erros de semianalfabetos.
O PCC é, pois, cria da mais dura de todas as formas de cumprimento de pena,  no CRP surgiu, de lá se expandiu para todo o sistema do Estado de São Paulo e, em 2001, através da primeira mega rebelião que o país assistiu, provou sua existência e organização de forma incontestável.
Limitavam-se, então, a ser a ‘facção que atua dentro dos presídios’ e, apresentaram, em 2001, entre as reivindicações: mudança das regras do CRP, fim das torturas, punição por abuso de autoridade, fim de revista vexatória às visitas, melhoria da assistência judiciária, agilização dos processos de execução (não são de espantosa atualidade?).
À época escrevi sobre a mega rebelião e, infelizmente, passados dezesseis anos, posso praticamente reproduzir. Tudo se aplica ao que ocorreu em 2017 em Manaus: “é evidente que quanto mais indignas forem as condições de vida no cárcere, quanto mais cerceadoras da expressão da personalidade humana, mais essas condições agravarão o problema. Mais degradante a prisão e mais rapidamente internalizadas serão as características de prisionalização, de valores próprios do sistema penitenciário, penetração profunda na cultura carcerária e mais difícil a vida em liberdade não ligada ao crime (cultura e linguagem próprias internalizadas junto com o aprisionamento).
É preciso que superemos nossos instintos punitivos. Podemos prender e trancafiar cada vez mais gente, mas não podemos impedi-los de pensar e agir. Enquanto insistirmos em segregar pessoas para que se tornem ‘boas’, nascerão (e nasceram)mais e mais PCCs. Se a ‘sociedade de bem’ insistir em ignorar a questão carcerária, mais prisionalização e PCCs ela produzirá”.
E não só produziu mais facções, como elas se organizaram muito mais, e passaram a atuar fortemente dentro e fora dos presídios, além de todos os cantos periféricos onde o Estado está ausente e onde uma parcela da população precisa de alguma forma de proteção mínima de direitos, como não ser assaltada dentro da própria comunidade.
Foi na mega rebelião de 2006, quando o PCC paralisou São Paulo que passou a ser conhecido como a ‘facção que atua dentro e fora dos presídios’.
O discurso fácil e populista de aprisionamento cada vez maior, penas mais longas e subtração de direitos evidentemente só agrava a situação. O Brasil é um dos melhores exemplos do mundo: deu tudo errado! Só conseguimos produzir cada vez mais crime organizado com essa política de encarceramento maciço em condições degradantes.
O direito penal deve ser pensado cientificamente. Quem não quer estudar não pode trabalhar na área! Magistrados (de qualquer Instância) que não tem condições de julgar com imparcialidade não podem trabalhar na área, se eles próprios não têm a grandeza de reconhecer, há quem tenha o dever de por eles reconhecer e afastá-los.
É exemplo claro de que quanto maior a pena, seja em duração, em repressão ou em desumanidade, pior o resultado. É ridículo ficar construindo mais presídios como proposta de solução do problema, assim como propor, a título de solução, transferência de líderes para presídios federais, pois apenas dá lugar a outras lideranças.
A responsabilidade por toda essa matança é de todos os agentes do Estado que têm obrigação de agir com seriedade e cientificidade! O discurso moral punitivista é para leigos ou ignorantes; alegar que a solução é para longo prazo é para irresponsáveis e incompetentes.
A falta de Estado, de respeito mínimo à dignidade humana, de critério, de justiça, de só prender provisoriamente e manter preso em flagrante aqueles só podem ser condenados à pena de prisão em regime fechado são causas das péssimas condições e do superaprisionamento no Brasil. Um país que se propõe a prender sem fim tem que ter cacife para bancar esses presos, mas, antes, tem que ter tido cacife para bancar educação e saúde dignas para toda sua população. Não temos nada disso e vergonhosamente, prendemos muito, prendemos mal e deixamos o sistema prisional controlado por facções.
Agora, com o horror deflagrado em Manaus, sabemos que nosso modelo de sistema prisional produziu dezenas de facções, que ‘atuam dentro e fora dos presídios de todo o país e nos países da vizinhança’.
E qual foi a grande solução apresentada? Construção de mais presídios e maior repressão nos existentes! Inacreditável! Nenhuma palavra sobre prisão só em casos evidentemente necessários, sobre melhores condições de aprisionamento. Não. Vamos continuar socando gente em condições degradantes, precise ou não, é um tipo de gente que não importa, que se soca em qualquer cubículo e pedaço de chão.
Com o ‘dom’ de quem previu em 2001 o que está acontecendo agora, posso afirmar que a solução proposta nos levará a que a próxima constatação seja que o sistema prisional brasileiro criou facção que ‘atua dentro e fora dos presídios, nos países da vizinhança e em todos os lugares do mundo’!
Chega de tanta mediocridade! Chega de prender indiscriminadamente. As formas de organização e o ódio só podem se aperfeiçoar e crescer. O Estado (representado por seus agentes) não pode ser truculento, não pode ser injusto, não pode responder com igual instinto irracional de vingança!
A solução do problema do sistema prisional deve passar por uma mudança de mentalidade que reconheça e aceite os limites do direito penal; que entenda que direito penal não é solução para problema social, ao contrário, é fonte geradora; deve passar por uma política criminal voltada para a consecução dos valores e princípios postos na Constituição. Passa, por fim, pelo necessário compromisso ético de todos que trabalham na área de se informarem e estudarem constantemente. Não é admissível palpite numa área que trabalha com a liberdade e a vida das pessoas.
Carmen Silvia de Moraes Barros é Defensora Publica SP Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direto Penal Faculdade de direito da USP.
Fonte: justificando

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