Brasil 247
Quando se fechou o extraordinário período político iniciado em 2003, é hora de balanços e, dentro deles, de críticas e autocríticas. É indispensável um bom e amplo balanço político, que inclui o inventário dos avanços e dos reveses, portanto, que inclui autocrítica e, sobretudo, desenho de novas perspectivas para a esquerda.
Falando em autocrítica, a primeira questão é: quem mais acertou e quem mais errou sobre esse período? Quem precisa, antes e de forma mais profunda, fazer a autocrítica sobre o que o país viveu nesse período?
A corrente que mais e de forma mais profunda e radical se equivocou sobre esse período foi a ultra esquerda. Na sua visão, Lula e o PT tinham traído, fariam um governo neoliberal de continuação do governo de FHC, fracassariam, seriam desmascarados pelo povo e sairiam definitivamente de cena. Vários saíram do PT, se uniram aos que já estavam fora e se prepararam para desenvolver a crítica drástica daquele governo e ocupar o lugar do PT no campo da esquerda.
Se aliaram à direita na campanha do "mensalão" contra o PT, na certeza de que era o capítulo final da desagregação desse partido e da derrota do governo Lula. Fizeram campanha eleitoral centrada no ataque ao Lula e ao PT, no segundo turno ficaram equidistantes (sic) entre Lula e Alckmin, que seriam a mesma coisa para o Brasil. Imaginemos apenas o Brasil dirigido por Alckmin na crise internacional do capitalismo e comparemos com a forma como o governo Lula a enfrentou, para nos darmos conta do erro garrafal da ultra esquerda e sua posição equidistante dos dois candidatos!
Não ter reconhecido o papel imensamente positivo das transformações levadas a cabo pelos governos do PT deixou a ultra esquerda na intranscendência, isolada do povo, beneficiário das políticas dos governos petistas. Fracassaram na sua estratégia de ser alternativa ao fracasso dos governos do PT, ao esgotamento da liderança do Lula. Tanto tempo depois, não podem apresentar ao país nada de significativo como sua contribuição, nem governos municipais ou estaduais, nada que refletisse capacidade de transformação da realidade.
As próprias votações das duas últimas eleições presidenciais refletem essa falta de apoio popular à ultraesquerda. O único avanço foi que, mesmo de forma tímida e sem apoio oficial, muitos membros desse grupos apoiaram o PT no segundo turno, como autocrítica implícita da posição que haviam tido em 2006 e como reconhecimento de que há dois campos antagônicos que se enfrentam e que é preciso optar por um deles.
O erro fundamental da ultra esquerda foi não reconhecer o caráter progressista dos governos do PT, fazendo a crítica de sua moderação e não enfrentamento de vários temas centrais, mas apoiando a direção em que esses governos transformaram a realidade. Em suma, situar-se no campo da esquerda, em que o PT poderia ser considerado uma força moderada, e eles, uma radical.
Mas a partir daquela análise inicial equivocada, da qual nunca se livraram, a ultra esquerda se condenou ao fracasso, à equidistância entre a direita e a esquerda, às vezes aliando-se àquela contra esta, à incapacidade de conquistar bases populares de apoio. O sucesso da liderança de Lula e dos governos do PT por tanto tempo foi o certificado do fracasso da ultra esquerda, que fechou olhos para isso e não consegue explicar por que Lula segue sendo o maior e o único grande líder popular no país, reconhecido pelo povo como tal. Só esse fenômeno, não explicado pela ultra esquerda, já denuncia sua incapacidade de entender o que vive o Brasil e a América Latina neste século, na era neoliberal do capitalismo.
A ultra esquerda conseguiu acumular erros típicos dessa corrente – ficar equidistante entre o PT e a direita – e de oportunismo de direita, ao se aliar à direita – à mídia, em particular – contra o governo do PT no caso do "mensalão". Ao mesmo tempo que, concentrando-se na posição de crítica ao governo do PT, sem reconhecer os avanços fundamentais para o país que foram levados a cabo, a ultra esquerda não desenvolveu nenhuma interpretação e projeto alternativo ao antineoliberalismo do governo. Mesmo contando, pelo menos inicialmente, com muitos intelectuais, estes se concentraram na crítica ao PT, sem desenvolver interpretações e propostas alternativas para o Brasil.
Outra corrente que tem que fazer uma profunda autocrítica é aquela que, unindo a ONGs, intelectuais – como John Holloway, Toni Negri, Boaventura de Sousa Santos, entre outros –, propôs a transformação do mundo sem tomar o poder, promovendo a "autonomia dos movimentos sociais" em relação à política, centrando-se na "sociedade civil" contra os partidos, o Estado e a política. Essa proposta foi responsável pela desaparição do movimento de piqueteiros na Argentina, que se recusou a participar da política, ao mesmo que a redução à intranscendência dos zapatistas do México – que agora começam a tentar sair do seu isolamento e lançam uma mulher indígena como candidata à presidência.
A transformação do mundo sem o Estado se mostrou impossível, a conquista do Estado pelas forças de esquerda e por movimentos sociais permitiu os enormes avanços em países como a Bolívia, o Equador, a Venezuela, o Brasil, a Argentina, o Uruguai. Enquanto que as forças que permaneceram nessa posição se revelaram impotentes para transformar a realidade. Toni Negri chegou a defender que o Estado se havia transformado em um instrumento conservador, impedindo-o de entender os avanços naqueles países.
Essas correntes se equivocaram no fundamental e não puderam compreender o mais importante movimento de esquerda neste século, com os governos dirigidos por Hugo Chávez, Lula, Nestor e Cristina Kirchner, Evo Morales, Pepe Mujica, Rafael Correa. Perderam o fio condutor da história nesses países e no conjunto da região, da luta antineoliberal, a linha divisória da história contemporânea.
Essas correntes são as que devem, antes de tudo, fazer uma profunda e enorme autocrítica por não ter acreditado que esses governos fossem possíveis e se distanciado assim, não apenas do mais importante movimento da esquerda até aqui, no século XXI, como se isolaram do povo, que apoiou maciçamente a esses governos. De forma que as alternativas a esses governos nunca estão na ultra esquerda – que em nenhum país do continente construiu forças nacionais significativas – mas na direita.
Essas forças nunca fizeram sua autocrítica e assim continuam reduzidas à intranscendência. Se concentram em pedir autocrítica ao PT, quando nem sequer esboçam autocrítica da sua posição absolutamente equivocada em relação aos governos que o PT realizou e que eles consideravam impossível. Não fazem tampouco autocrítica do fracasso do seu projeto, que os reduziu a forças marginais na vida política brasileira, com votações irrisórias nas eleições presidenciais decisivas na vida política brasileira.
No próximo artigo falaremos da autocrítica que deve fazer o PT, que acertou em cheio no diagnóstico do tipo de governo que haveria que fazer e que cometeu erros no desenvolvimento do seu governo, como acontece também em outros países com governo antineoliberais na região.
O PT deve fazer autocrítica, sim, mas teve o mérito de ter proposta e realizado governos no Brasil que promoveram a mais extraordinária transformação democrática no plano social que o país já viveu. É no reconhecimento desse sucesso e desses avanços, em cujo desdobramento se deram os problemas que levaram a seu esgotamento, que o PT tem que fazer sua autocrítica e buscar novos caminhos que permitam retomar o caminho traçado inicialmente por Lula, o maior líder popular da história brasileira.
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