Há pouco mais de um ano, em meio às manifestações de direita financiadas pela Fiesp e organizadas pelo PSDB por trás de movimentos "de fachada" como o Patriotas e o MBL, uma faixa afixada no portão do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, inspirou-me a escrever um artigo: "Não adianta calar e isolar o Cunha. Somos milhões de Cunhas", dizia a frase. "Eu não sou Cunha!", rebati no texto, tentando identificar onde estariam estes milhões. O mais proeminente deles, possivelmente, seria o senador Aécio Neves da Cunha, não apenas por trazer a pecha nome, mas por nunca ter escondido seu interesse no golpe que então se delineava.
Naquela época, eu já alertava para os riscos que personagens como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro representavam para a democracia, ao invocarem o fantasma do golpe e incentivarem uma turba de raivosos. Exemplifiquei com cenas lamentáveis, como um gari acuado por manifestantes, ou uma senhorinha, empunhando um cartaz com os dizeres "Por que não mataram todos em 1964?".
Pois bem. O golpe se concretizou, trazendo com ele imensos retrocessos para o país, sobretudo, no que se refere ao desmonte da democracia e à retirada de direitos. O futuro da nação é incerto: o governo golpista de Michel Temer não é reconhecido por muitas nações; as esquerdas se organizam na resistência e o Estado responde com violenta repressão; estudantes ocupavam em todo o país, até esta segunda-feira (24), 1016 escolas, 51 universidades e 82 institutos federais, sem que a imprensa noticiasse uma linha do movimento.
Na outra ponta, o plano arquitetado para o golpe começou a "fazer água". Revelado no grampo da conversa entre o senador Romero Jucá (PMDB) e o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, ele chegava a ser simplista: "tem que mudar o governo para estancar essa sangria..." O objetivo, no entanto, não foi alcançado. Michel Temer se mostrou incapaz de cumprir sua parte e parar a Lava Jato para proteger seus pares. Prova disso foi a prisão, na semana passada, justamente de quem deflagrou o golpe e se tornou seu maior símbolo: o ex-presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha.
Não sem motivos, o presidente ilegítimo - que se encontrava em viagem para o Japão - voltou às pressas para o Brasil, assim que soube da prisão. Consigo, Eduardo Cunha pode levar para o buraco centenas de senadores e deputados e - por que não? - o próprio Temer. O que, talvez, explique as condições diferenciadas de sua prisão. Realizada com "o decoro devido a tão importante autoridade", ela não teve nem sinal da truculência e do espetáculo midiático que caracterizaram outras prisões e a ilegal condução coercitiva do ex-presidente Lula. As recomendações do juiz Sérgio Moro foram expressas: "Não deve ser utilizada algema, salvo se, na ocasião, evidenciado risco concreto e imediato à autoridade policial. Consigne-se que, tanto quanto possível, não se deve permitir a filmagem ou a fotografia do preso durante a efetivação da prisão e deslocamento do preso..."
O poder de barganha de Cunha talvez seja a melhor explicação também para outro episódio que estarreceu o país. Sabendo das cartas que tinha na manga, ele não hesitou em raspar suas contas bancárias. Deu, assim, uma bela de uma "banana" à Justiça, que havia decretado o bloqueio de R$ 221 milhões, em uma ação para ressarcimento por prejuízos na venda de um campo de petróleo da Petrobras na África. Isso mesmo: a Justiça foi tão ágil que não encontrou um só centavo. O pedido judicial havia sido feito ao Banco Central, que encontrou dinheiro apenas nas contas da senhora Eduardo Cunha, Cláudia Cunha: parcos R$ 623,5 mil, bloqueados em junho.
Além da morosidade seletiva da Justiça, a prisão de Cunha escancara problema ainda mais sério. Se já era flagrante a irregularidade do impeachment, pela ausência de crime de responsabilidade, como fica agora a situação, quando o condutor de todo o processo é colocado atrás das grades, acusado de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas? A ilegitimidade da retirada de Dilma torna-se incontestável, havendo quem aposte em uma anulação do impeachment pelo Supremo Tribunal Federal. Otimistas, reconheço, pois para isso, seria necessário haver isenção no julgamento, o que não tem sido comum na nossa Corte maior.
De qualquer forma, não faltam elementos para constatarmos o fracasso do golpe. Aqueles que conspiraram para a derrubada de um governo legítimo agora tremem, diante de uma possível delação do comparsa. Sabem que se ele disser tudo o que sabe, não sobrará pedra sobre pedra. Fato é que o próprio Michel Temer, preocupado com a tensão no governo, baixou uma lei do silêncio, proibindo os membros do Planalto de comentarem a prisão de Cunha.
Enquanto isso, não se vê nas ruas, nem nas redes sociais, qualquer rastro daqueles "milhões de Cunhas". Teriam sido abduzidos? Ou perceberam que não passaram de massa de manobra para viabilizar o projeto das elites e se esconderam, envergonhados? É bom que compreendam, de uma vez por todas, que o feitiço virou contra o feiticeiro e, agora, é Temer quem vive seu inferno astral. Cabeças hão de rolar, acreditem. Conseguirá o golpista impedir que o levem à guilhotina? Muitos analistas já têm previsto "o golpe dentro do golpe". Será?
Fonte: brasil247
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