Por Miguel do Rosário, O Cafezinho - Reproduzo abaixo um trecho de um debate realizado há alguns dias, em Londres, durante o qual o proprietário da Folha de São Paulo, Otávio Frias Filho, tomou uma surra histórica, em pergunta feita pela britânica Sue Brandford, correspondente internacional do Latin America Bureau, organizadora do evento.
Otavio Frias, furioso, reagiu chamando a austera Brandford de "militante do PT".
Tem sido cômica e previsível a reação dos barões da mídia às críticas, hoje mundiais, à sua postura golpista. Todo mundo, para eles, é "petista", "pago pelo PT", "simpatizante do PT".
A reação dos oligarcas da mídia brasileira é sempre furibunda, autoritária. Invariavelmente, os oligarcas atacam o direito dos críticos se expressarem, e não o conteúdo em si.
A sua indignação é contra a própria liberdade de expressão de seus críticos, apesar de terem tentado se promover (cinicamente), nos últimos anos, como paladinos dessa liberdade.
Vide a carta que o próprio dono da Globo, João Roberto Marinho, enviou ao The Guardian, em resposta a um artigo de David Miranda.
Como exemplo desse esforço, de não apenas contestar a crítica, mas de negar-lhe a existência, a Globo contratou um pistoleiro, Pedro Doria, para escrever um artigo incrivelmente mentiroso dizendo que a imprensa internacional não chama o impeachment de golpe. Eu fiz um post sobre essa pistolagem.
Ou seja, a Globo tentou vender a seus leitores que as críticas da imprensa internacional ao golpe simplesmente não existiram: eram invenção dos "blogs". Por isso, aliás, mandou (e foi obedecida imediatamente) o governo Temer perseguir os blogs.
Não podendo mais negar a existência das críticas ao golpe, o colunista Guilherme Fiúza, tentou uma jogada desesperada: acusou o New York Times de estar no bolso do PT.
Parece piada, e é tão ridículo que a gente efetivamente faz piada em cima dessas coisas, mas no fundo é uma coisa trágica, porque a consequência foi um golpe de Estado e o início de um desmantelamento brutal, atabalhoado, sádico, de todo um conjunto de programas sociais. O governo Temer, por exemplo, acaba de reduzir o Bolsa Família em R$ 14...
Essa irritação senhoril da mídia às críticas é também uma reação fascista, por várias razões:
- primeiro porque não responde à crítica em si, e sim ataca a pessoa que a emite, rotulando-a, tentando desqualificar o conteúdo de sua crítica colando no emissor um rótulo político cujo peso semântico a própria Folha ajudou a carregar de preconceito.
- segundo porque parte do pressuposto de que existam duas classes de pessoas: os isentos, seres superiores como o próprio Frias, imunes às paixões políticas, acima do bem e do mal; e os militantes, seres inferiores, cujas opiniões irracionais não servem ao debate e, portanto, nem deveriam participar de um debate sério.
Frias diz isso mesmo: que Brandford não deveria estar no mesmo debate que ele, porque ele é jornalista e ela é uma "militante do PT".
Em algumas circunstâncias, não é xingamento chamar alguém de militante do PT. Em outras, como é o caso agora, é uma afirmação puramente ofensiva, uma tentativa vil, mau caráter, de desqualificar o debatedor.
Brandford não tem ligação nenhuma com PT. É uma britânica culta, viajada, cosmopolita, uma pessoa humanista e democrática, que conhece a realidade do Brasil, que é crítica ao golpe e, portanto, crítica ao papel que a mídia brasileira desempenhou nele.
Essa afirmação de Frias é uma manifestação inacreditável de arrogância e cinismo, bem típica da Folha.
Frias afirma, também com incrível cinismo, que foi "pessoalmente" contra o impeachment. Ora, o seu jornal fez (e ainda faz) propaganda aberta pelo impeachment desde o primeiro dia de 2015, através de todo o tipo de artifício semiótico. E não são sequer artifícios disfarçados, subliminares: a seção Poder da Folha exibe, desde início de de 2015, propagandas fixas, em destaque, em favor do impeachment. A cobertura das manifestações pró-impeachment tem sido monstruosamente enviesada, em favor do impeachment, além de profundamente desequilibrada em relação à cobertura dos eventos contra o golpe. Todos os dias, ocorrem debates contra o golpe. A Folha não divulga nenhum deles. Não faz vídeo, não faz charge, não faz entrevistas, contra o golpe, e quando o faz é numa proporção infinitamente menor que a mesma cobertura para o outro lado. Isso além da censura aberta, descarada, às críticas à própria mídia, em especial à Globo.
Tanto a Folha como a Globo ajudaram a convocar as manifestações em favor do impeachment.
É deveras interessante ouvir a resposta de Frias porque é muito raro, no Brasil, a participação desses barões no debate sobre mídia, até porque a eles não interessa que haja debate sobre o tema; a menos, é claro, que seja um debate absolutamente controlado por eles, como são alguns seminários de suas associações em São Paulo, com ingressos custando R$ 600,00.
Pode-se dizer que é o cinismo mais puro já produzido na história da humanidade.
Na história do golpe, a participação da mídia poderia ser resumida da seguinte forma: a Globo entrou com a violência; a Folha, com o cinismo.
Frias diz que "não acredita em manipulação".
Ora, ora, ora.
Todos os livros e filmes já publicados sobre manipulação da informação devem ser jogados no lixo?
A manipulação em torno da história das armas de destruição em massa no Iraque não teve efeito nenhum sobre a opinião pública norte-americana e mundial? Frias nunca viu o filme Zona Verde?
Se a imprensa norte-americana, cúmplice da Casa Branca, conseguiu manipular a experiente opinião pública de seu país, a manipulação de uma sociedade democraticamente imatura, vítima de um sistema de comunicação infinitamente mais concentrado, é muito mais fácil!
O fascismo europeu, o antissemitismo, o ódio sectário que produziu duas guerras mundiais, não teve nada a ver com a história da manipulação de imensos contingentes populacionais, por meios de comunicação de massa?
Os estudos de Adorno sobre a indústria cultural, os livros de Chomsky sobre fabricação de consenso, os ensaios de Umberto Eco, devem ser todos tratados como inúteis?
Na verdade, Frias desrespeita (cinicamente, claro, porque ele não acredita nisso) a própria história dos meios de comunicação de massa, que tem igualmente aspectos positivos, de defesa de direitos humanos e democracia.
Esses aspectos positivos, porém, só podem ser elogiados e compreendidos se olharmos também os negativos: a manipulação sistemática da informação e, no caso da América Latina, a sua tendência histórica em apoiar movimentos antidemocráticos e golpistas.
É preciso entender que o poder de manipulação é proporcional ao cinismo da imprensa em se pretender isenta.
Porque a máscara de "isenção" é a principal arma da manipulação.
Se os jornais tivessem uma postura politicamente transparente, poderiam até fazer o mesmo tipo de jornalismo que fazem hoje, porém seu poder de manipulação seria reduzido. E o poder de manipular, de produzir crises, de interferir na democracia, é o que a imprensa brasileira mais preza, porque é através deste poder que ela consegue destruir qualquer adversário político ou concorrente comercial, e arrancar financiamentos e recursos publicitários do governo.
Ao final de sua fala, Frias apela para o sofismo barato: os críticos da mídia brasileira devem escolher, diz ele, se a mídia está decadente ou se continua todo-poderosa. Por aí se vê que o ódio de Frias, como dos barões midiáticos em geral, é sempre em direção aos críticos.
Ora, a mídia corporativa decaiu sim. A Folha imprimia 1,5 milhão de exemplares nos anos 90. Hoje imprime 200 ou 300 mil. Mas o seu poder continua muito grande, sobretudo quando se alia a setores partidarizados da burocracia: aí sim, o seu poder se multiplica consideravelmente.
Uma coisa é um jornal sozinho, fazendo denúncias, publicando reportagens investigativas feitas com muito esforço. Outra é quando setores da burocracia, imersos numa conspiração que o próprio jornal ajudou a insuflar, se aliam a este jornal para derrubar um governo. Aí sim a mídia corporativa volta a ser todo-poderosa.
Voltaremos ao cinismo de Frias em outras ocasiões.
Antes, tenho um pedido.
Precisamos transcrever, em inglês mesmo, a pergunta da Sue Brandford, para em seguida traduzirmos e legendarmos. Os internautas podem fazer a transcrição, de trechos ou completa, na caixa de comentários.
Se transcrever um trecho, outro internauta complementa, e o trabalho fica mais leve para todos.
Abaixo, o vídeo:
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