Por
Rogerio Dultra dos Santos**
O
mundo assistiu, no fatídico dia 17 de abril – um domingo de horror para o
Brasil –, a aprovação inicial do processo de impeachment da Presidente Dilma
Rousseff sem que fossem expressos fundamentos jurídicos suficientes. Este foi,
dentre outros fatores, o resultado da distorção provocada por um sistema
eleitoral baseado no financiamento empresarial de campanha.
Mas
a consolidação do golpe de Estado – como a maioria da imprensa internacional
compreendeu o que acontece no país – não passa somente pela derrota do governo
Dilma Rousseff no plenário da Câmara dos Deputados. São vários os seus fatores,
como as manifestações de rua que dividiram o país; a oligopolização da mídia,
transformada em partido das classes dominantes; a pouca firmeza do governo
Rousseff em manter o comando das agências repressivas; a crise econômica; ou
mesmo a articulação sediciosa do Vice-Presidente Michel Temer, em andamento
pelo menos desde meados de 2015.
Uma
das maiores ameaças à democracia hoje, aquilo que pode eliminar a possibilidade
de sonharmos com eleições livres de ingerências externas e com um Estado de
Direito – que sempre existiu de fato apenas para setores não populares – é a
chamada “Operação Lava-Jato”.
O
que é a Operação Lava-Jato
Até
mesmo a origem da Operação Lava-Jato é problemática. De um lado, a sua
existência justifica-se como uma investigação da Polícia Federal, iniciada em
março de 2014, com o objetivo de examinar eventual lavagem de dinheiro num
posto de gasolina de Curitiba (daí o nome “fantasia” Lava-Jato), chegando à
descoberta de propinas na empresa brasileira de extração e refino de petróleo e
gás, a PETROBRÁS.
Os
primeiros indiciados e presos da Operação seriam um negociador de câmbio negro
(o Doleiro Alberto Youssef) e um Ex-Diretor de Petróleo e Gás da PETROBRÁS
depois deste último ganhar um carro de presente do doleiro.
Na
verdade, esta origem “pública” justifica e legitima a continuidade da Operação
na Justiça Federal do Paraná e não o seu envio para o STF, ou mesmo a sua
decomposição em vários processos endereçados a outros Estados da Federação,
onde a maioria de crimes teria ocorrido.
O
Juiz Moro argumenta que o primeiro processo que lhe deu projeção nacional – o
julgamento das fraudes no Banco do Estado do Paraná (o Banestado), em 2006 –,
envolvia o mesmo doleiro Alberto Youssef e
o falecido político José Janene (do Partido Progressista), investigados
por evasão de divisas em Curitiba. Por conta deste fato, Moro seria o juiz
competente para receber os inquéritos relativos à PETROBRÁS.
O
problema é que as escutas telefônicas que fundamentam esta ligação – e que
autorizariam ser o Juiz Moro competente para avaliar o processo – foram obtidas
de forma ilegal. E, no direito brasileiro, a origem ilícita da prova invalida a
sua utilização no processo (Art. 5ª, LVI, da Constituição).
Apesar
das justificativas, muitos dos processados pela Operação são políticos com
mandatos em curso e têm direito a serem julgados diretamente pelo Supremo.
Objeto de inúmeras acusações e requerimentos, o Juiz Sérgio Moro tem avocado –
isto é puxado processualmente para si – todos os inquéritos abertos em outros
Estados sem ter competência ou jurisdição para tanto.
De
qualquer sorte, fundada no instituto da delação premiada, uma novidade mais ou
menos recente do sistema processual brasileiro, a Operação apresentou à mídia
nacional um intrincado esquema de propinas e financiamento ilegal de campanhas
eleitorais (o chamado caixa dois), envolvendo empreiteiras de construção civil,
diretores da PETROBRÁS e políticos de vários partidos.
Procuradores
do Ministério Público Federal lotados na Cidade de Curitiba, local do início da
operação, se organizaram junto à 13ª Vara Especializada da Justiça Federal,
presidida pelo Juiz Moro, afim de realizar os acordos de delação e articular
novas investigações, que se sucedem em “fases” – atualmente a Operação
encontra-se na 25ª fase – conjuntamente à Polícia Federal. Esta é a “força
tarefa”.
A
força tarefa da lava-jato tomou dimensões de um quarto poder no Brasil,
surfando na onda do “combate à corrupção” e legitimada pelos meios de
comunicação de massa, estes claramente articulados em oposição política ao
primeiro governo Dilma Rousseff, no ano de sua apertada e dramática reeleição.
A
Operação tem se mostrado prodigiosa em números. São mais de 480 buscas e
apreensões, 117 prisões, 49 acordos de delação premiada, além de dezenas de
acordos de cooperação internacional em vários países, 93 condenações,
contabilizando 990 anos de pena. O Juiz e os Procuradores foram alçados à
condição de heróis nacionais e grande parte da crise política do governo deriva
de suas ações.
Curiosamente,
embora um sem número de agentes políticos ligados aos partidos de oposição ao
governo tenham sido delatados ou mesmo aparecido em listas apreendidas em
investigações, a maioria absoluta dos indiciados e presos têm ligação com o
governo.
Uma
lista apreendida de FURNAS, empresa de energia elétrica do Estado de Minas
Gerais, indicou a existência de propina para suas principais lideranças, ainda
no mandato de Fernando Henrique Cardoso. Os hoje responsáveis pela articulação
da aprovação do impeachment de Rousseff estão na lista de propinas, como o
candidato derrotado à presidência do Brasil Aécio Neves, o Senador José Serra e
o atual governador de São Paulo Geraldo Alkmin, todos do PSDB.
Delatores
na Lava-Jato indicaram recentemente que o esquema de propina de Furnas
continuou sendo operado até o governo Lula por Aécio Neves, sem que isto tenha
gerado qualquer ação repressiva ou de investigação por parte da “força tarefa”.
Aliado
a este fato, reiteradas operações contra aliados do governo, em especial contra
o Ex-Presidente Lula têm ocorrido, sem que nada tenha sido comprovado. Apesar
da falta de provase mesmo de indícios, as suaspeitas e as ilações do MPF
culminaram com a “condução coercitiva” do Ex-Presidente no último mês. Isto
gerou fortes suspeitas de que a Operação lava-Jato tem, para além do propalado
combate à corrupção, um objetivo político maior: retirar o Partido dos
Trabalhadores do poder e evitar que Lula, candidato forte à sucessão
presidencial, seja eleito.
Os
problemas da Operação Lava-Jato
Nesse
sentido, e num exame mais atento, pode-se concluir que os principais
instrumentos da Operação Lava-Jato são ou ilegais, ou inconstitucionais, ou
utilizados de forma abusiva ou seletiva e enviesada.
Um
problema estrutural da Operação é a sua organização em forma de “força tarefa”.
O fato de que policiais federais, procuradores e juiz criminal estejam operando
em conjunto viola a Constituição Federal na medida em que, no Brasil, vige o
princípio constitucional do processo penal acusatório.
Isto
significa que, pelo nosso ordenamento jurídico, as funções de investigação,
acusação e julgamento são distintas e não podem ser confundidas, ou pior,
fundidas na figura de uma “força tarefa” que age em comum acordo.
Se
é o mesmo órgão que investiga, acusa e julga, não há a equidistância e a
independêcia exigidos por lei e pela constituição. O indivíduo submetido a tal
procedimento tem violado seu direito a um juiz imparcial, ou seja, um juiz que
se coloca equidistante entre as partes, ou seja, que se coloca numa posição de
imparcialidade entre acusação e defesa.
Nesse
sentido, o processo judicial, amparado pelo direito ao contraditório e à ampla
defesa, se transforma num mero inquérito, numa inquisição, onde o indiciado ou
o réu perdem qualquer condição de se contrapor em igualdade de condições à
acusação, visto que esta se confunte com quem julga.
Outro
conjunto de problemas deriva dos chamados “vazamentos” seletivos. Para que se
legitime politicamente a atuação da “força tarefa” frente à opinião pública,
partes das delações, ou mesmo partes ou o inteiro teor de processos em segredo
de justiça, muitas vezes com informações pessoais e privadas de indiciados ou
réus chegam às mãos dos meios de comunicação quase em tempo real.
Esta
articulação sistemática e “secreta” entre a “força tarefa” ou alguns de seus
agentes e os meios de comunicação tem produzido dois efeitos: a) o de antecipar
a criminalização de indivíduos sem que haja acusação formal ou sentença
condenatória – numa espécie de antecipação “midiática” da culpa; e b) o de
“blindar” a operação perante a opinião pública, criando uma aura de mística
moralista em torno de sues principais personagens.
Um
destes personagens, o Procurador Deltan Dallagnol, tem realizado dezenas de
palestras pelo país defendendo o caráter de cruzada religiosa de sua atuação
bem como uma reforma completa da legislação nacional com o objetivo de eliminar
garantias processuais e direitos fundamentais para “facilitar” a criminalização
de corruptos (as chamadas “Dez medidas contra a corrupção”).
Os
últimos vazamentos produzidos pela Operação para televisões e jornais geraram inclusive uma repreensão do Supremo
Tribunal Federal e um pedido de “desculpas” do Juiz Moro. Foram os vazamentos
de interceptações telefônicas de conversas privadas entre o Ex-Presidente Lula
e a Presidente Dilma Rousseff e desta com Ministros de Estado.
Pela
legislação federal que regula a
interceptação telefônica e de dados (a Lei 9296/96) e de acordo com a
Constituição, o conteúdo de nenhuma interceptação judicial pode ser
publicizado. E a sua publicização indevida constitui crime, com pena de
reclusão de dois a quatro anos e multa. Assim, o “pedido de desculpas” do Juiz
se fez sob a real – ou pelo menos jurídica – possibilidade dele ser
responsabilizado criminalmente. O que, diga-se de passagem, não ocorreu.
Outro
fato corriqueiro na Operação Lava-Jato é a sonegação de informações ou a
proibição de acesso dos advogados de defesa ao inteiro teor de documentos e
mesmo do processo. Vários juristas renomados abandonaram a defesa de clientes
presos ou indiciados pela Lava-jato por conta da simples incapacidade
processual de realizaram a atividade de defesa. Outros tantos fizeram publicar
nos órgãos de imprensa um abaixo-assinado com dezenas de professores de direito
e juristas, denunciando as arbitrariedades da operação.
O
expediente mais cruel, entretanto, é a constante e excessiva utilização da
prisão processual, sob fundamentos genéricos – como a “garantia da ordem
pública” e a “conveniência da instrução criminal” – com o fito de constranger
empresários e outros acusados a realizar a “delação premiada”.
Depois
de presos em média por mais de cinco meses, os réus realizam delações e muitas
vezes são soltos para responder em liberdade o processo. Enquanto aqueles que
não aceitam fazer a delação são mantidos presos e condenados a penas
estratosféricas, como ocorreu com o principal executivo e dono da empresa de
construção civil Marcelo Odebrecht, condenado a 19 anos de prisão.
Assim,
a forma como o instituto da “delação premiada” foi “reinventado” pela Operação
Lava-Jato violenta a Constituição e a legislação penal e processual penal
brasileira: o constrangimento de réus confessos e a coação para que admitam
somente o que interessa às autoridades tornaram-se o fundamento jurídico por
excelência de seu funcionamento. Alguns têm caracterizado este procedimento
como tortura.
Este
tipo de atuação judicial estimula o que se chama comumente na teoria do
processo penal de primado da hipótese sobre o fato, sintoma usual dos
inquéritos ou inquisições. Na inquisitio, a autoridade constitui uma
interpretação sobre o que acredita ter acontecido. Ela conduz – às vezes inconscientemente
– os testemunhos na direção de sua verdade imaginada, à revelia do que
efetivamente poderia provar com o trabalho exaustivo que caracteriza o sistema
de provas judicial, que exige o contraditório e a ampla defesa. Em resumo, a
“delação premiada” – especialmente quando obtida de réu preso por um período
longo e sem sentença –, aprofunda a submissão do sistema jurídico brasileiro à
lógica inquisitorial, essencialmente autoritária, kafkiana e avessa às
garantias constitucionais
Alguns
acordos de delação já firmados com o Tribunal Regional Federal da 4ª Região –
colegiado de Desembargadores a que deve se submeter o Juiz Sérgio Moro e que,
aparentemente, chancela as violações do procedimento descritas – impedem que
delatores entrem com Habeas Corpus ou mesmo que desistam dos pedidos de
liberdade eventualmente existentes.
A
pesquisa relatada pelo repórter investigativo Sérgio Rodas, da Revista Conjur,
dá conta de que na maioria dos acordos de delação da “Lava-Jato”, a defesa dos
réus fica proibida de ter acesso ao inteiro teor dos processos, por motivo de
“sigilo”.
Os
réus delatores devem, também, renunciar ao direito ao silêncio e à garantia
contra a autoincriminação. Suas penas serão cumpridas, na maioria das delações,
no regime inicial geralmente mais gravoso, por tempo indeterminado. Todas estas
cláusulas dos acordos de delação violam dispositivos constitucionais e legais.
Além
disso, lembre-se, enquanto as grandes corporações de mídia têm acesso livre e
abundante a “vazamentos” regulares de partes dos processos, ditas sigilosas, os
advogados de defesa simplesmente são impedidos de saber contra o que estão
lutando, numa distorção medievalesca do devido processo legal, como já
adjetivou o Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki sobre atitudes
do juiz Moro na Operação Lava-Jato.
O
que significa a Operação Lava-Jato em termos jurídicos e políticos
É
preciso dizer, contudo, que o sistema penal brasileiro – o quarto maior do
mundo em população carcerária –, já tende a abdicar de sentenças condenatórias
como fundamento das prisões. Ele já funciona como uma burocracia de
encarceramento regular e automático dos indivíduos alcançados pelos aparelhos
policiais. A população pobre já conhece há muito o lado fascista da justiça
criminal brasileira. Prende-se e mantêm-se presos réus somente com indícios e
prisões policiais são chanceladas pelo judiciário de forma burocrática e pouco
criteriosa, conforme pesquisas abundantemente comprovam.
Para
compreender como um movimento que, em tese, objetiva combater a corrupção no
núcleo do poder político e econômico, mas que se transformou numa arma política
enviesada e seletiva, é preciso não só entender o funcionamento da Operação
Lava-Jato, mas como opera o sistema de justiça criminal no Brasil.
Na
prática, apesar da codificação e de inúmeras leis, o sistema repressivo
brasileiro – em especial as instituições encarregadas da persecução penal –
nunca foi formalista. O verniz jurídico das decisões criminais sempre serviu de
escudo para a seleção e determinação enviesada da criminalidade. É o que a sociologia criminal
chama de configuração artificial de inimigos públicos, que variam de acordo com
a demanda dos interesses dominantes.
No
país, inclusive por conta de uma herança ditatorial nunca extirpada, quase
sempre se prendeu antes de se investigar, quase sempre se condenou antes de se
comprovar a culpa, quase sempre se puniu olhando a quem. A justiça brasileira
não é cega: ela encherga de forma seletiva.
Para
significar o protagonismo político da Operação Lava-Jato é preciso lembrar que
os governos Lula e Dilma ampliaram e empoderaram todos os órgãos do Poder
Judiciário, incluindo aí a Polícia Federal, não somente através de planos de
carreira, aumento de salários, concursos públicos, equipamentos, etc.
Este
empoderamento foi radical a ponto de que os governos petistas abrissem mão de
sua prerrogativa de controlar a indicação de várias chefias destes órgãos (e
isso entre 2002 e 2016). As listas tríplices e sêxtuplas para a escolha de
Ministros, Procuradores e Chefes, estabelecidas pela Constituição para permitir
a coordenação de governo de órgãos como o Superior Tribunal de Justiça, o
Ministério Público Federal, a Advocacia Geral da União, etc., respaldada pela
democracia, foram “respeitadas” de forma como nunca dantes se viu.
Assim,
os “indicados” passaram a ser invariavelmente os primeiros das listas, isto é,
os mais votados em seus órgãos de origem, e não aqueles escolhidos pelo Poder
Executivo – independentemente da posição nas listas –, na fórmula clássica de
“freios de contrapesos”, onde o Poder Executivo controla politicamente as
indicações das “cabeças” das instituições judiciais, realizando na prática o
equilíbrio entre Poderes.
Acontece
que este procedimento “respeitoso” à suposta democracia interna dos órgãos do
Poder Judiciário, em sua origem corporações funcionais, gerou um efeito
perverso: uma radicalização do corporativismo nunca dantes vista. Grupos
políticos coesos se formaram em torno da luta pela hegemonia interna,
produzindo uma agenda política de autonomia funcional e independência em
relação ao Poder Executivo – o que, inclusive, a Constituição não permite.
Portanto,
a pauta política que hoje é capitaneada pela “Operação Lava-Jato” não nasce
somente da cabeça de um juiz e seus “assessores” procuradores. Ela é fruto,
paradoxalmente, de um processo de erosão do controle democrático sobre o
Judiciário, cujos responsáveis diretos foram os próprios governos do Partido
dos Trabalhadores.
Sem
o devido controle institucional, o principal objetivo desejado pela Operação
Lava-Jato, o “combate à corrupção”, é concretizado através da supressão dos
limites do processo penal. O fato é que a Operação Lava-Jato, desde o começo, e
por uma “tradição institucional” funciona como um juízo de exceção.
O
juízo de exceção é exercido nos moldes de uma monarquia sem leis ou como uma
ditadura, ou seja, pela vontade exclusiva de quem dirige o processo. A
autoridade assim compreendida não se submete aos limites legais e não avança os
respeitando. O juízo de exceção tem, no seu horizonte de sentido, um objetivo
político: o de reafirmar um determinado poder.
Por
trás de uma pauta aparentemente respaldada pelo direito subjaz, assim, um
projeto moralizador, refratário ao funcionamento naturalmente plural e
contraditório da democracia. Imbuída de que porta a verdade inquestionável, a
Operação Lava-Jato se debruça sobre a vida política nacional, esquadrinhando os
seus agentes e impedindo o seu curso, numa ânsia religiosa de purificação do
que considera estranho à República.
Portanto,
uma instituição submetida aos limites normativos oficiais é quase inviável
quando a corporação define sua agenda operacional a partir de interesses
exclusivistas. É que a instituição perde seu caráter republicano, porque não
submetida ao controle externo, porque não orientada pelo interesse público.
Assim, o primeiro grande movimento dos agentes do Estado que atuam em nome do
povo – sem terem sido eleitos para isto – é a criminalização da política: eles
desacreditam das eleições, dos políticos e dos partidos.
O
caráter político do juízo de exceção macula o seu pretexto de limpeza e
correição. Neste processo judicial, é exatamente aquele que corrompe o
procedimento quem persegue os corruptos do país.
A
Operação Lava-Jato se inspirou assumidamente na “Operação Mãos Limpas”,
ocorrida na Itália nos anos 1990. Lá os objetivos de exterminar os partidos
representativos e questionar o processo democrático como um todo funcionou como
um relógio. Nada houve de menos político e democrático que as sucessivas
eleições de Berlusconi, um subproduto de mídia, de perfil francamente
autoritário.
Subjaz
a este movimento mais pontual da Operação Lava-Jato um projeto de reforma
legislativa inspirado no maior sistema carcerário do mundo, os EUA. O objetivo
é a flexibilização ou mesmo a extinção de garantias fundamentais que protejam
os cidadãos contra o arbítrio do Estado penal.
Apesar
de decisões recentes do STF na direção da fragilização de direitos processuais
penais em casos isolados, como a relativização da presunção de inocência, o
problema para a implantação deste projeto é que o nosso sistema constitucional
– apesar de nosso histórico autoritário – ainda cerca de direitos processuais
os cidadãos brasileiros que, mesmo processados e condenados, têm a garantia do
duplo grau de jurisdição e todos os recursos a ele inerentes, bem como fazem
juz à presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença
condenatória.
Embora
a prática do sistema viole sistematicamente estas garantias elas estão lá,
quase que para demonstrar que os operadores do sistema de justiça as violam
sistematicamente. O objetivo especificamente legislativo da Lava-Jato é fazer
que esta prática repressiva, hoje ilegal e inconstitucional, se transforme numa
operação respaldada por uma nova e mais flexível legislação.
Pela
lógica da Lava-Jato, não é o direito que tem a função de controlar, limitar e
punir as práticas violentas e autoritárias do sistema de justiça criminal, mas
sim estas práticas torpes é que devem orientar a produção legislativa.
Apesar
de já experienciarmos uma mudança de rumo em direção à tradição anglo-saxã do
processo, como a observada desde meados dos anos 1990, ela ainda não foi capaz
de modificar a essência do sistema. O nosso processo penal, pelo menos na sua
orientação constitucional, continua majoritariamente acusatório – na sua
divisão entre investigação, acusação e juízo – e com uma rigidez no que
respeita aos direitos processuais, o que o difere fortemente do processo penal
norte-americano.
Pode-se
afirmar, entretanto, que leis esparsas relevantes, como a de crimes hediondos,
a dos juizados especiais criminais, a de crime organizado, a de crimes contra a
ordem tributária e econômica, a lei de lavagem de capitais e a lei de drogas
trouxeram um deslocamento na dinâmica do processo: a disponibilidade para que o
Ministério Público e o Juízo negociem a culpa, conduzam depoimentos para a
obtenção de provas e barganhem a atribuição de penas. Tudo isto em um trabalho
“conjunto” com a acusação.
Este
é, obviamente, um movimento claro em direção à relativização de direitos e à
“privatização” dos procedimentos e decisões judiciais, bem ao gosto dos
operadores da Lava-Jato, muitos deles com estudos realizados nos EUA.
Na
prática, esta legislação de inspiração alienígena flexibiliza o processo na
direção da eficiência gerencial e na configuração do andamento das causas
penais tendo em vista a contabilidade dos resultados.
O
juiz, esta figura complexa que transparece racionalidade imparcial e se submete
sem constrangimento à necessidade de atender a “opinião pública”, transforma-se
em um gerente de expectativas sociais e do andamento do processo, para além dos
constrangimentos e limites que as normas jurídicas possam estabelecer.
Escancara-se
com isto o caráter decisionista do direito, isto é, o fato incontornável de que
as razões políticas e econômicas do processo orientam a sua gestão, para além
da letra da lei. O juiz transforma-se, deste modo, num agente sobredeterminado
por questões outras que não as estritamente jurídicas no momento em que decide
sobre o caso penal.
A
barganha, a transação, a negociação, o blefe são os novos instrumentos que o
processo penal brasileiro passou a oferecer para que se alcance os objetivos
sociais de criminalização da pobreza e da política. Embora se possa afirmar que
existam diferenças entre o processo de criminalização da pobreza e o da
criminalização da política, o fato é que o mesmo instrumento está funcionando,
nos dias de “Operação Lava-Jato”, sob princípios idênticos.
A
Operação Lava-Jato tem feito bem para o Brasil?
Dois
dias antes da deflagração da 24ª fase da “Operação lava-jato” o Ministro da
Justiça pediu exoneração. Assim, no último dia 4 de março, o Juiz Sérgio Moro,
violando o Código de Processo Penal, autorizou a “condução coercitiva” do
Ex-Presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que prestou depoimento em situação
de cárcere ilegal durante algumas horas no Aeroporto de Congonhas em São Paulo.
Fez
isto, portanto, numa situação em que não havia Ministro da Justiça apto para
impedir o arbítrio – visto que, em tese, o MJ têm ascendência administrativa
sobre a Polícia federal. Se não fosse a imediata reação de populares que
lotaram o local com protestos, provavelmente Lula seria levado diretamente para
Curitiba, Q.G. da Operação, onde seria preso.
Esta
operação foi flagrantemente ilegal porque Lula não foi intimado anteriormente a
prestar depoimento na Operação lava-jato, nem mesmo se negou a depor – os dois
requisitos que autorizariam a condução coercitiva, segundo o Código de Processo
Penal (seja como testemunha, Art. 218, seja como acusado, art. 260). Lula nunca
havia se negado a depor na Operação Lava-Jato exatamente porque nunca havia
sido intimado.
Nesta
toada em que a Operação Lava-Jato encontra-se livre, como lembra Gisele
Cittadino, prendendo para obrigar as delações que lhe interessam, arquivando
investigações contra a oposição ao governo, vazando somente os depoimentos que
sustentam aquilo que pretende provar, e ocupando o púlpito pedindo apoio da
população, o que tem feito o Supremo Tribunal Federal, guardião da
Constituição?:
“Desde
logo, e como estratégia para não arriscar um único arranhão em sua própria
autoridade, o STF assiste, paralisado, aos desmandos da autoridade de um juiz
da 13ª Vara da Justiça Federal do Paraná. Como acredita que sua legitimidade
decorre exclusivamente do fato de que é autoridade, colocar limites à
autoridade alheia parece representar, para o STF, colocar limites a si
próprio.”
O
certo é que, continua a autora, apesar de liberal em matéria
comportamental, o STF, após várias
decisões em processos de natureza penal e, especialmente, diante da
relativização do princípio da presunção de inocência, tem revelado o seu conservadorismo
em matéria criminal.
Moro,
o operador judicial da “Lava-Jato”, ao fugir da neutralidade e escancarar a
politização da justiça, compromete e empareda o Judiciário. Na pele de um
justiceiro vingador, ele nega a própria razão de ser da Justiça, afasta o
Judiciário da posição de garante da democracia e torna-se um poderoso ator
politico, sem a correspondente responsabilidade exigida pela República. Assim,
o condutor do processo passa por uma verdadeira a entronização, uma cerimônia
que exalta sua figura e a coloca no centro das expectativas morais e sociais,
como um exemplo e guia do que fazer.
O
juiz e os procuradores da “lava-jato” não são questionados por vazamentos,
declarações fora da legislação da magistratura, prêmios recebidos com regozijo
em cadeia nacional de tv, comentários sobre processos em andamento. Eles são
celebrados, considerados representantes da elite sã, combatentes da diferença e
exterminadores da barbárie.
Num
balanço das “fases” da Operação Lava-Jato deu conta da recuperação de R$ 2.9
bilhões frutos de corrupção. No decorrer dessas “fases”, como se disse, houve a
prisão de um sem número de executivos e diretores de empresas de construção
civil, de petrolíferas e mesmo da eletronuclear, responsável pela construção do
primeiro submarino nuclear com tecnologia nacional.
O
problema é que o resultado da Operação foi a retração desses setores da cadeia
produtiva nacional, gerando um prejuízo na economia estimado em R$ 60 bilhões.
O aprofundamento da crise econômica, sensivelmente estimulado pela Operação
Lava-Jato levou, numa linha reta, ao aprofundamento da insegurança jurídica,
política e econômica, e a uma crise sem precedentes que ameaça destruir o país
e não salvá-lo ou purificá-lo.
Demandar
o devido processo é considerado hoje uma atitude de desespero dos que se sentem
injustiçados, e não uma necessidade básica que torna possível a convivência
social das diferenças, ou uma garantia coletiva, racional e objetiva da
liberdade, para ficar no âmbito da tradição do constitucionalismo liberal. Esta
é a tragédia atual do Brasil: a existência de senhores da lei que brincam como
querem com a nossa democracia.
*
Esse texto é fruto do acompanhamento da Operação Lava-Jato desde o seu início
“oficial”, em 2014. Boa parte das reflexões aqui expostas derivou de textos
anteriormente pulbicados no site www.democraciaeconjuntura.com e em outros
sites de análise política no Brasil, durante os anos de 2015 e 2016.
**Professor
de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, Doutor
em Ciência Política (antigo IUPERJ), Bacharel em Direito (UCSal) e Mestre em
Direito Público (UFSC).
Texto
originalmente publicado no blog Democracia e Conjuntura
Fonte:
ocafezinho
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