Mesmo com Lei Maria da Penha, mulheres enfrentam dificuldades para punir agressores |
Do bbc
Violência
doméstica: 5 obstáculos que mulheres enfrentam para denunciar
O
combate à violência doméstica no Brasil, apesar do avanço na legislação que
persegue e pune os agressores, ainda tem um tortuoso e longo caminho pela
frente.
A
Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, que estabelece como crime a violência
doméstica, foi vista como um marco – é reconhecida pela ONU como uma das três
melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher.
No
entanto, a cada ano, mais de um milhão de mulheres ainda são vítimas de
violência doméstica no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE).
A
lei incentivou vítimas a denunciarem casos de agressões – só entre 2006 (quando
a lei foi sancionada) e 2013, houve aumento de 600% nas denúncias de abuso
doméstico. Mas é nesse processo, no da denúncia, que ainda estão alguns dos
principais obstáculos no combate à violência contra mulheres no país.
O
caso de Maria Fernanda* ilustra o problema. Ela resolveu denunciar o namorado
após ter sofrido agressões por dois anos e meio. Mas a experiência que teve na
delegacia a traumatizou.
"Vocês
vêm aqui todo dia por causa dessas 'coisas de mulher' e depois fica tudo
bem", foi a primeira coisa que o delegado disse ao ouvir o início do
depoimento de Maria Fernanda – e ele passou a meia hora seguinte fazendo de
tudo para convencê-la de que seria um erro denunciar o namorado agressor.
"Eles tentam de todas as formas fazer você desistir. No meu caso,
conseguiram. Saí de lá humilhada."
Experiências
como a de Maria Fernanda fizeram com que muitas mulheres vítimas de violência
preferissem permanecer caladas. Segundo uma pesquisa DataSenado de 2013, 20,7%
das mulheres que admitiram ter sofrido violência doméstica nunca procuraram a
polícia.
"Às
vezes, o processo de denunciar acaba sendo mais violento pra essas mulheres do
que a própria violência", disse à BBC Brasil Silvia Chakian, promotora de
Justiça e coordenadora do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à
Violência Doméstica).
Ela
afirma que, apesar dos avanços da Lei Maria da Penha, "ainda é preciso
melhorar a efetividade dela" para que o processo seja menos traumático e
resulte em punições concretas. Ainda assim, Chakian ressalta: "Essas
críticas precisam chegar ao Ministério Público. Elas não podem simplesmente
acreditar que a lei não funciona e que vão viver uma vida de violência e
apanhar até morrer – porque é isso que acontece se a gente não rompe esse
ciclo".
Em
conversa com a promotora e algumas vítimas de violência, a BBC Brasil listou
alguns dos principais obstáculos que uma mulher enfrenta para denunciar um
agressor.
1
- Delegacia da Mulher não é 24h, nem abre aos finais de semana
A
Delegacia da Mulher (DDM) foi criada para proporcionar um atendimento
diferenciado às mulheres vítimas de violência. Em teoria, em unidades especiais
da polícia civil criadas só para atender esses casos, a mulher poderia receber
um acolhimento mais adequado.
Delegacia da Mulher não abre aos finais de semana, nem funciona 24h - é uma das críticas das vítimas |
No
entanto, essas delegacias especiais, em geral, funcionam somente no horário
comercial. Em São Paulo, por exemplo, elas fecham em horários variados na faixa
das 18h às 20h.
Aos
finais de semana – quando ocorrências de estupro ou violência doméstica são
mais frequentes –, as DDMs estão fechadas, o que obriga mulheres a esperarem
alguns dias para fazer a denúncia ou então a recorrerem às delegacias
tradicionais, como foi o caso de Maria Fernanda.
2
- São 368 Delegacias da Mulher para 5,5 mil municípios no Brasil
O
número de Delegacias da Mulher no país ainda é bastante restrito. Milhares de cidades
não contam com unidades especiais desse tipo – são 368 espalhadas por 5.597
cidades brasileiras.
Sem
uma DDM por perto, novamente a mulher é encaminhada para uma delegacia
tradicional, onde há menos preparo dos policiais para lidar com casos de violência
desse tipo.
3
- Falta de capacitação de agentes públicos
A
reclamação mais comum e recorrente entre as mulheres é sobre a forma como são
tratadas nas delegacias.
"Você
tem certeza que vai fazer isso (denunciar)? Essas marcas aí? Estão tão
fraquinhas...até você chegar no IML (para fazer exame de corpo de delito), já
vão ter desaparecido. Se você denunciar, vai acabar com a vida dele. Ele vai
perder o emprego e não vai adiantar nada, porque vai ficar alguns dias preso,
depois vai pagar fiança e vai sair ainda mais bravo com você", dizia o
delegado à Maria Fernanda.
Por
já ter ouvido histórias como essa, Luísa Guimarães também não procurou a
polícia quando foi estuprada por dois taxistas. "Seria mais um sofrimento.
Estava traumatizada. Tinha certeza de que, se fosse a uma delegacia,
provavelmente sairia de lá culpada", afirmou.
A
promotora de Justiça Silvia Chakian admite que esse é o maior problema para
melhorar a eficiência da Lei Maria da Penha. "Os agentes públicos – da
polícia e até do judiciário – são membros de uma sociedade machista. E
reproduzem esses estereótipos às vezes no atendimento dessas mulheres. Falta
uma capacitação desses agentes", afirmou.
"Muitas
vezes, eles fazem perguntas absurdas de busca de detalhes que é impossível elas
recordarem. É um tipo de violência que há um mecanismo psicológico de querer
esquecer, querer apagar. E eles tratam essa mulher como se ela não fosse digna
de crédito. Ela acaba tendo a responsabilidade de provar que não está ali
mentindo."
Em 2014, mais de 52 mil mulheres denunciaram casos de violência |
Para
amenizar esse problema, o governo federal lançou o programa "Mulher, Viver
Sem Violência" em março de 2013. Ele tem, entre outros objetivos, o de
capacitar policiais e agentes públicos em geral para atender melhor essas
mulheres vítimas de violência.
Além
disso, a pasta também criou unidades chamadas de "Casa da Mulher
Brasileira", lugares que integram no mesmo espaço serviços especializados
para os diversos tipos de violência contra a mulher: acolhimento, delegacia,
Ministério Público, etc. Desde 2013, foram criadas duas unidades – uma em
Brasília e outra em Campo Grande – e outras cinco estão em construção.
4
- Ter de comprovar a violência
Quando
consegue vencer as dificuldades de fazer uma denúncia, a mulher vítima de
violência precisa passar por outro processo complexo: o de conseguir comprovar
o crime. Primeiro porque alguns tipos de agressão não deixam vestígios – a
violência psicológica, por exemplo.
E,
segundo, porque algumas marcas são "facilmente contestáveis" por
advogados de defesa. "Na lei aqui, muitas vezes a discussão fica em torno
do consentimento. E aí em uma violência que acontece entre quatro paredes, não
tem testemunha", explica Chakian.
"Aqui
a gente adota o critério do 'No Means No' ('Não significa não'). A vítima tem
que dar sinais que está rejeitando a relação sexual. A lei diz que só configura
estupro mediante ao uso da violência ou grave ameaça. Na prática, isso
significa que são essas mulheres que têm de comprovar que rejeitaram o ato
sexual, e isso é cruel. As circunstâncias deveriam comprovar."
"No
Canadá, por exemplo, a legislação avançou para o 'Yes Means Yes' (Sim significa
sim). Ou seja, o consentimento precisa ser expresso e afirmativo. Se a vítima
não dá evidências de consentimento, se ela não contribui para a relação, é
estupro. Por exemplo, se a menina está bêbada, com os braços repousados, isso
não é símbolo de consentimento", conta a promotora.
Segundo
Chakian, muitas vezes, no julgamento de casos assim, acaba prevalecendo o
"conservadorismo comportamental". "Eles usam muito isso, dizem:
'ah, mas ela não se deu o respeito'. Mas como assim? Se ela está pelada, de
saia curta ou coberta até o pescoço, ela tem que ser respeitada do mesmo
jeito."
5
- O agressor nem sempre é punido
A
dificuldade em comprovar a violência parece se refletir nos dados que comparam
números de denúncias com o de agressores punidos.
Segundo
informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 2.439
homens estavam presos por crimes de violência doméstica até junho de 2014. Para
se ter uma ideia, no mesmo ano de 2014, 52.957 mulheres denunciaram casos de
violência – entre eles violência física, psicológica, moral, sexual, etc. –,
uma média de 145 por dia.
Casa da Mulher Brasileira é uma das ações do governo federal para reunir todos os atendimentos à mulher vítima de violência no mesmo local |
"Temos
que melhorar a efetividade da lei. Não tem que ser difícil comprovar essa
punição. Temos que mudar esse pensamento de que é preciso comprovar essa
violência com testemunha e com prova pericial. Temos que avançar para dar
credibilidade à palavra dessas mulheres", disse Silvia Chakian.
Além
disso, segundo a promotora, é preciso avançar na punição determinada por lei a
alguns casos graves de violência contra a mulher que, atualmente, se encaixam
em tipos penais muito brandos.
"Ainda
não tem tipo penal com gravidade compatível ao da violência de divulgar vídeos
ou fotos íntimas de mulheres, por exemplo. Ele se encaixaria no 'crime contra a
honra', ou 'injúria', 'difamação'. Mas esses crimes têm punição muito branda,
cerca de 15 dias de prisão ou 3 meses no máximo", explicou.
*Nome
fictício
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