Resumo:
o presente artigo tem a finalidade de apresentar uma análise detalhada do crime
de ESTUPRO (CP, art. 213), visando possibilitar aos operadores do direito uma
reflexão sobre as particularidades do delito diante da legislação atual. O
Título VI do Código Penal, com a redação dada pela Lei 12.015/2009, (em
consonância com a evolução social e como desdobramento dos trabalhos da “CPI da
Pedofilia”), passou a prever os Crimes contra a dignidade sexual, alterando a
respectiva redação anterior que previa os Crimes contra os costumes, pois tal
expressão já não traduzia a realidade do bem juridicamente protegido.
Ao
eleger a dignidade sexual como bem jurídico protegido, o Código Penal
estabelece a devida sintonia com o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana (CF, art. 1º, III). Toda pessoa humana tem o direito de exigir
respeito em relação à sua vida sexual, como também tem a obrigação de respeitar
as opções sexuais alheias e para tanto deve o Estado assegurar os devidos
meios.
Embora
a dignidade ou não de certo ato sexual é algo subjetivo e incerto, pois o que é
digno para um pode não ser para outro, e vice-versa[1], verifica-se que é
penalmente relevante, em matéria de sexualidade, somente conduta que se
relaciona à relação sexual não consentida (seja por força de coação ou fraude),
à exploração por terceiros e à cometida contra vítimas que a lei considera
vulneráveis. Em outros casos, deve prevalecer o direito à liberdade e à
intimidade das pessoas.[2]
Sumário:
1. Introdução – 2. Classificação doutrinária – 3. Objetos jurídico e material –
4. Sujeitos do delito – 5. Conduta típica – 6. Elemento subjetivo – 7.
Consumação e tentativa – 8. Figuras típicas qualificadas – 8.1. Tentativa de
estupro e superveniência de resultado agravador – 9. Causas de aumento de pena
– 10. Concurso de crimes – 11. Pena e ação penal.
1.
Introdução
O
crime de estupro consiste no fato de o agente “constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso” (CP, art. 213, caput).
São
quatro os elementos que integram o delito: (1) constrangimento decorrente da
violência física (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis compulsiva); (2)
dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino; (3) para ter
conjunção carnal; (4) ou, ainda, para fazer com que a vítima pratique ou permita
que com ela se pratique qualquer ato libidinoso. O estupro, consumado ou
tentado, em qualquer de suas figuras (simples ou qualificadas), é crime
hediondo (Lei 8.072/90, art. 1º, V).
2.
Classificação doutrinária
Trata-se
de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa),
plurissubsistente(costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo
(decorre de uma atividade positiva do agente “constranger”) e,
excepcionalmente, comissivo por omissão (quando o resultado deveria ser impedido
pelos garantes – art. 13, § 2º, do CP), de forma vinculada (somente pode ser
cometido pelos meios de execução previstos no tipo penal: violência ou grave
ameaça), material (só se consuma com a produção do resultado conjunção carnal
ou outro ato libidinoso), de dano (só se consuma com a efetiva lesão ao bem
jurídico protegido, a liberdade sexual da vítima), instantâneo(uma vez
consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga), monossubjetivo (pode
ser praticado por um único agente), doloso (não há previsão de modalidade
culposa), não transeunte(quando praticado de forma que deixa vestígios), ou
transeunte (quando praticado de forma que não deixa vestígios).
3.
Objetos jurídico e material
O
objeto jurídico do crime de estupro é liberdade sexual. As pessoas têm o
direito de dispor do próprio corpo como também a plena liberdade de escolha do
parceiro sexual, para com ele, de forma consensual, praticar a conjunção carnal
ou outro ato libidinoso. Objeto material é a pessoa constrangida, sobre a qual
recai a conduta criminosa do agente.
4.
Sujeitos do delito
A
Lei 12.015/2009 transformou o delito de estupro em crime comum, assim, o
sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (homem ou mulher), uma vez que o tipo
penal não mais exige nenhuma qualidade especial do agente. Assim, é possível
que haja estupro cometido por homem contra mulher, homem contra homem, mulher
contra homem e mulher contra mulher.[3]
Durante
muito tempo entendeu-se que, com o casamento, o homem teria o direito de exigir
da mulher a prática de relação sexual pelo chamado “débito conjugal” valendo-se
inclusive da violência ou grave ameaça, sob o manto da excludente de ilicitude
do exercício regular de direito. Hoje em dia esse posicionamento se modificou
na doutrina e na jurisprudência, entendendo-se que, embora com o casamento
surja para os cônjuges o direito de manterem relações sexuais um com o outro,
indistintamente, verifica-se, porém, que esse direito não pode ser exercido
mediante o constrangimento com o emprego de violência ou grave ameaça. Em suma:
esse direito apenas garante aos cônjuges o direito de postular o término da
sociedade conjugal, em razão de violação dos deveres do casamento, nos termos
da legislação civil (CC, art. 1.572).
Sujeito
passivo é qualquer pessoa (homem ou mulher), independentemente de suas
qualidades (honesta ou desonesta, recatada ou promíscua, virgem ou não, casada
ou solteira, velha ou jovem). Entretanto, tratando-se de vítimas vulneráveis, o
crime será o de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).
5.
Conduta típica
O
núcleo do tipo penal está representado pelo verbo constranger (compelir,
coagir, obrigar, forçar), tendo como objeto material qualquer pessoa (alguém),
e as seguintes finalidades: (1) ter conjunção carnal; (2) praticar outro ato
libidinoso; (3) permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Para
constranger a vítima, pode o sujeito se valer da violência ou grave ameaça, que
são os meios de execução do crime de estupro, legalmente previstos no
dispositivo legal em estudo. A fraude não é meio de execução do crime de
estupro, caso em que o delito será o de violação sexual mediante fraude (CP,
art. 215).
Violência
– é o emprego de força física (vis absoluta) capaz de dificultar, paralisar ou
impossibilitar a real ou suposta capacidade de resistência da vítima,
resultando em vias de fato ou lesão corporal. Pode ser direta ou imediata
quando empregada contra o titular do bem jurídico tutelado, ou indireta ou
mediata quando empregada a terceiros ligados à vítima por relações de amizade e
parentesco.
Grave
ameaça – também denominada de violência moral (vis compulsiva) é a promessa da
prática de um mal a alguém, de acordo com a vontade do agente, consistente na
ação ou omissão, capaz de perturbar a liberdade psíquica e a tranqüilidade da
vítima. O mal grave (material, moral, econômico, profissional, familiar etc.)
prometido na ameaça deve ser certo (não vago), verossímil(passível de ocorrer),
iminente (que está para ocorrer e não previsto para um futuro longínquo)
einevitável (que o ameaçado não possa evitar). Não é necessário que o agente
tenha intenção ou efetiva condição para concretizar a ameaça (praticar o mal
prometido), basta que a ameaça seja séria, capaz de intimidar. A ameaça também
pode ser direta ou imediata quando dirigida contra a vítima, titular do bem
jurídico tutelado, ou indireta ou mediata quando dirigida a terceiros ligados à
vítima por relações de amizade e parentesco.
Com
o emprego da violência ou grave ameaça, o sujeito constrange alguém a ter
conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso. Conjunção carnal é a cópula vagínica, ou seja, o relacionamento
sexual normal entre homem e mulher, com a penetração completa ou incompleta do
pênis na vagina, com ou sem ejaculação. Ato libidinoso é aquele que visa ao
prazer sexual, com exceção da conjunção carnal, tais como a masturbação, os
toques íntimos, a introdução de dedos ou objetos na vagina, o sexo oral, o sexo
anal etc.
Entendemos
que o beijo na boca, ainda que “roubado”, jamais poderá caracterizar ato
libidinoso. Nesse caso, o crime poderá ser de constrangimento ilegal (CP, art.
146), ou a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61),
sob pena de ferir o princípio da proporcionalidade ao entender que o ato de
tomar à força um beijo na boca de outrem possa ser considerado e punido
severamente como crime hediondo.
Para
configurar o estupro é necessário o dissenso (não consentimento) sincero e
positivo da vítima durante todo o ato sexual, ou seja, uma reação efetiva à
vontade do agente de com ele ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ela se pratique outro ato libidinoso. Assim, não há falar-se em estupro
quando a negativa não é sincera, ou se a vítima de início resistiu, mas,
iniciada a conduta, consentiu o contato sexual. Para comprovar o dissenso não
se exige que a vítima pratique atos heróicos. Na lição de Cesar Roberto
Bitencourt, “não é necessário que se esgote toda a capacidade de resistência da
vítima, a ponto de colocar em risco a própria vida, para reconhecer a violência
ou grave ameaça”.[4] Tratando-se de vítimas vulneráveis, com ou sem o seu
consentimento, o crime será o de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A).
São
duas as formas, por parte da vítima, de cometer o estupro: (1) praticar – é o
caso em que a vítima tem participação ativa, ou seja, é ela quem pratica o ato
libidinoso; (2) permitir que se pratique– sugere atitude passiva da vítima, a
qual é obrigada a suportar a conduta do agente. Não é necessário que haja
contato físico entre o autor do constrangimento e a vítima. O agente pode, por
exemplo, obrigá-la a se masturbar diante dele, sem tocá-la em momento algum.[5]
Essas duas formas de cometer o delito resultam em três condutas típicas:
(a)
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal
– a vítima é obrigada a ter conjunção carnal com o agente em uma relação
exclusivamente heterossexual (entre vítima mulher e agente homem ou vítima
homem e agente mulher);
(b)
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar outro ato
libidinoso – nessa hipótese a relação pode ser heterossexual ou homossexual,
onde a vítima (homem ou mulher) desempenha um papel ativo, pois ela pratica
algum ato libidinoso diverso da conjunção carnal nela própria (exemplo:
automasturbação) ou em terceiro (exemplo: felação[6]);
(c)
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a permitir que com ele
se pratique outro ato libidinoso – nessa hipótese a relação pode também ser
heterossexual ou homossexual, mas o papel da vítima é exclusivamente passivo,
pois permite que nela se pratique um ato libidinoso diverso da conjunção carnal
(exemplos: sexo anal e cunnilingus[7]).
Na
prática de atos libidinosos a vítima pode desempenhar, simultaneamente, papéis
ativo e passivo. É o que ocorre, por exemplo, na conjunção entre a felação e o
cunnilingus, onde a mulher simultaneamente realiza sexo oral no homem e dele
suporta em seu corpo ato de igual natureza.[8]
Não
há estupro, em razão da ausência de tipicidade, o fato de o agente constranger
alguém a presenciar ou assistir a uma conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
Nesse caso, se a vítima tem idade igual ou superior a 14 anos, o crime é de
constrangimento ilegal (CP, art. 146). Tratando-se de vítima menor de 14 anos,
o crime poderá ser o de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou
adolescente (CP, art. 218-A).
O
crime de estupro, em regra, é praticado de forma comissiva (decorrente de uma
ação positiva do agente), mas, excepcionalmente, pode ser praticado de forma
comissiva por omissão (quando o resultado deveria ser impedido pelos garantes –
art. 13, § 2º, do CP), como, por exemplo, no caso do carcereiro que, ciente da
intenção dos demais detentos, nada faz para impedir que estes estuprem um
companheiro de sela.
6.
Elemento subjetivo
O
elemento subjetivo do crime de estupro é o dolo, consistente na vontade livre e
consciente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso. Não se exige nenhum fim especial de agir (satisfação da lascívia ou
outra qualquer). Assim, também estará configurado o estupro se a intenção do
agente era humilhar a vítima, ganhar uma aposta de amigos, contar vantagem a
terceiros etc. Com efeito, o que importa é que, em todos os casos, a liberdade
sexual da vítima foi atingida pelo emprego da violência ou grave ameaça, sendo
irrelevante a motivação do agente.[9] O tipo penal não admite a modalidade
culposa.
7.
Consumação e tentativa
O
estupro é crime material, que só se consuma com a produção do resultado
naturalístico, consistente na conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
Consuma-se, portanto, após o constrangimento da vítima, mediante violência ou
grave ameaça: (1) na hipótese de conjunção carnal – no momento da penetração
completa ou incompleta do pênis na vagina, com ou sem ejaculação; (2) na
hipótese de outro ato libidinoso – no momento em que a vítima pratica em si
mesma, no agente ou em terceira pessoa algum ato libidinoso (exemplos:
masturbação, sexo oral etc.), ou no instante em que alguém atua libidinosamente
sobre seu corpo (exemplos: toques íntimos, sexo anal etc.). A prática de mais
de um ato libidinoso, no mesmo contexto fático e com a mesma vítima, importará
em crime único, mas deverá ser levado em conta pelo juiz na dosimetria da pena.
A
tentativa é possível por se tratar de crime plurissubsistente (costuma se
realizar por meio de vários atos), permitindo o fracionamento do iter criminis.
Entretanto, diante do caso concreto, é necessário que o intérprete da lei penal
faça a seguinte distinção pela análise do dolo do agente:
(a)
Tentativa de estupro, quando o agente visa à conjunção carnal, mas não alcança
o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade. Ocorre quando, iniciada a
execução com o constrangimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça,
mesmo depois de realizar outros atos libidinosos que configurem prelúdio da
cópula vagínica, ficando, porém, caracterizada a tentativa de estupro porque o
agente não alcançou o resultado desejado (conjunção carnal);
(b)
Tentativa de estupro, quando o agente visa apenas outro ato libidinoso, mas não
o alcança por circunstâncias alheias à sua vontade. Ocorre quando, iniciada a
execução com o constrangimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça,
mesmo sem a realização de qualquer ato libidinoso, caracterizando a tentativa
de estupro porque o agente não alcançou o resultado desejado (outro ato
libidinoso).
Entendemos
que essa é a melhor solução em relação à tentativa do delito, mesmo reconhecendo
o seguinte contra-senso: se o agente realiza qualquer ato libidinoso como
prelúdio da conjunção carnal não alcançada, responde por tentativa de estupro;
mas, se realiza qualquer outro ato libidinoso, quando não visa à conjunção
carnal, responde por estupro consumado.
8.
Figuras típicas qualificadas
Os
§§ 1º e 2º, do art. 213, do Código Penal, elencam as formas qualificadas do
estupro, alterando o mínimo e o máximo das penas previstas em abstrato. São
três as qualificadoras (circunstâncias específicas), a saber:
(a)
Estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave (§ 1º, primeira
parte) – Enquanto o estupro simples (tipo básico) tem pena de reclusão de 6 a
10 anos, o estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave tem pena
de reclusão de 8 a 12 anos.
A
expressão lesão corporal de natureza grave foi utilizada em sentido amplo, ou
seja, abrange as lesões corporais graves e gravíssimas (CP, art. 129, §§ 1º e
2º). Eventuais lesões corporais leves, ou mera contravenção de vias de fato,
decorrentes da violência empregada pelo agente ficam absorvidas pelo crime-fim
(estupro).
Essa
qualificadora é exclusivamente preterdolosa, ou seja, pressupõe que haja dolo
no estupro e culpa em relação ao resultado lesão grave. Assim, se ficar demonstrado
que houve dolo (direito ou eventual) também em relação à lesão corporal, o
agente responde por estupro simples em concurso material com a lesão corporal
de natureza grave ou gravíssima, conforme o caso.
(b)
Estupro qualificado pela idade da vítima (§ 1º, última parte) – Com a mesma
pena prevista para a qualificadora anterior, o estupro é qualificado se a
vítima é menor de 18 e maior de 14 anos. Se a vítima for menor de 14 anos, o
crime é de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), independentemente do emprego
da violência ou grave ameaça.
Existe
uma injustificável lacuna no texto legal em relação à vítima que é estuprada no
dia do seu 14º aniversário, isto porque no estupro de vulnerável a vítima é
menor de 14 anos, e no estupro qualificado pela idade, a vítima é maior de 14 e
menor de 18 anos. Então, nesse caso, qual seria a melhor solução?
Entendemos
que se o estupro é cometido no dia do 14º aniversário da vítima, o agente deve
responder por estupro qualificado pela idade da vítima (CP, art. 213, § 1º,
última parte) pelos seguintes motivos: (1) a caracterização de estupro simples
deve, desde logo, ser afastada, caso contrário, o agente seria punido menos
severamente do que se o crime ocorresse no dia seguinte; (2) não seria também
estupro de vulnerável, visto que a lei exige que a vítima seja menor de 14
anos; (3) o aniversário é comemorado no mesmo dia e mês em que a vítima nasceu,
porém, matematicamente, a vítima completa a quantidade de anos exatamente no
dia anterior ao seu aniversário, como, por exemplo, quem nasce em 1º de janeiro
completa a quantidade de anos no dia 31 de dezembro, embora o aniversário seja
comemorado no dia seguinte.
(c)
Estupro qualificado pela morte (§ 2º) – Enquanto o estupro simples (tipo
básico) tem pena de reclusão de 6 a 10 anos, o estupro qualificado pela morte
tem pena de reclusão de 12 a 30 anos.
Essa
qualificadora também é exclusivamente preterdolosa, ou seja, pressupõe que haja
dolo no estupro e culpa em relação ao resultado morte. Assim, se houver dolo
(direto ou eventual) também em relação à morte, o agente responde por estupro
simples em concurso material com o homicídio qualificado.
Se
a vítima é menor de 18 e maior de 14 anos, e falecer em decorrência do estupro,
incidirá somente a qualificadora em estudo (CP, art. 213, § 2º), que importa na
absorção da qualificadora em razão da idade da vítima (CP, art. 213, § 1º,
última parte), devendo, porém, essa circunstância ser levada em conta pelo juiz
na dosimetria da pena.
8.1.
Tentativa de estupro e superveniência de resultado agravador
É
possível que o estupro não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do
agente, como, por exemplo, quando a vítima consegue se desvencilhar do
estuprador e, ao fugir, sofre lesão corporal de natureza grave ou vem a
falecer. Então, qual seria a melhor solução para o caso de estupro tentado e
superveniência de resultado agravador (lesão grave ou morte)?
Entendemos
que o agente responde pelo crime de estupro qualificado pela lesão corporal de
natureza grave ou pela morte (CP, art. 213, §§ 1º ou 2º), conforme o caso, pelos
seguintes motivos: (1) as qualificadoras são exclusivamente preterdolosas,
portando incompatíveis com a figura do crime tentado; (2) o tipo penal utiliza
a expressão “se da conduta resulta”, ou seja, se do ato de constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, resulta lesão corporal de natureza grave ou
morte, independentemente da consumação do delito.
9.
Causas de aumento de pena
Com
o advento da Lei 12.015/2009, por equívoco do legislador, passaram a existir
dois Capítulos com mesma denominação “Disposições Gerais” no Título dos crimes
contra a dignidade sexual. São os Capítulos IV e VII que contém causas de
aumento de pena aplicáveis ao estupro e aos demais crimes de natureza sexual,
respectivamente nos arts. 226 e 234-A, do Código Penal, a saber:
(a)
Aumento de quarta parte, se o crime é cometido em concurso de duas ou mais
pessoas (CP, art. 226, I)– Esse aumento de pena tem fundamento na maior
facilidade obtida pelo agente no emprego dos meios de execução do deleito. Como
bem observa André Estefam, “a coparticipação de duas ou mais pessoas no
proceder dirigido à violação da dignidade sexual, sem dúvida, facilita a
subjugação do ofendido”.[10]
(b)
Aumento de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão,
cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor (aquele que ministra educação
individualizada) ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem
autoridade sobre ela (CP, art. 226, II)– A pena maior se justifica em razão de
o agente ter algum tipo de parentesco, de relação próxima, de ser empregador,
ou exercer por qualquer outro título autoridade sobre a vítima. Exemplo:
professor particular de natação que constrange sua aluna, mediante violência ou
grave ameaça, a praticar ato libidinoso.
Aplicando
a causa de aumento em estudo, evidentemente não pode ser aplicada a agravante
genérica que se refere a crime cometido contra descendente, irmão ou cônjuge
(CP, art. 61, II, e), para não incidir no bis in idem (incidência duas vezes
sobre a mesma coisa), pois o fato já é considerado como a causa especial de
aumento de pena, em estudo.
(c)
Aumento de metade, se o crime resultar gravidez (CP, art. 234-A, III)– Esse
aumento de pena se justifica pelo fato do crime ofender a dignidade sexual e
ainda resultar em uma gravidez indesejada. Entretanto, observa-se que não se
pune o aborto praticado por médico, quando precedido do consentimento da
gestante, e se a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II).
(d)
Aumento de um sexto até metade, se o agente transmite à vítima doença
sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador (CP, art.
234-A, IV)– Esse aumento de pena incide quando o sujeito, agindo com dolo
direto (sabe) ou eventual (deve saber), contamina a vítima por meio do contato
sexual. A exasperante exige o efetivo contágio, diversamente dos crimes de
perigo (CP, arts. 130 e 131) que se consumam independentemente da transmissão
da moléstia.
É
possível que no mesmo caso concreto incida mais de uma causa de aumento de
pena. O estupro, por exemplo, pode ser cometido por duas ou mais pessoas e
também resultar em gravidez e transmissão de moléstia venérea. Nesse caso, pode
o juiz limitar-se a uma só causa de aumento de pena, desde que opte pela maior
(CP, art. 68, parágrafo único).
10.
Concurso de crimes
Antes
do advento da Lei 12.015/2009, que fez a fusão dos crimes de estupro e atentado
violento ao pudor (arts. 213 e 214), não havia dúvida alguma de que esses
crimes podiam ser praticados em concurso material, desde que os atos
libidinosos praticados não fossem prelúdio da conjunção carnal. Assim, por
exemplo, o sexo oral ou anal, praticado com a mesma vítima, antes ou depois da
cópula vagínica, constituía-se em crime autônomo de atentado violento ao pudor,
em concurso material (soma da penas) com o estupro, visto que predominava o
entendimento no sentido de que, por não se tratarem de delitos da mesma espécie
(estavam previstos em tipos penais distintos), não havia possibilidade de
aplicação do benefício do crime continuado (CP, art. 71), em que o juiz aplica
a pena de um único crime, aumentando-a (sistema da exasperação), em vez de
somá-las.
A
lei vigente fez surgir uma polêmica doutrinária a respeito da natureza jurídica
do crime de estupro (CP, art. 213), ou seja, o crime passou a ser um tipo misto
alternativo (existem vários verbos que definem as hipóteses de realização do
mesmo fato delituoso, ou seja, há crime único), ou trata-se de tipo misto
cumulativo (existem vários verbos que definem unidades distintas do delito, ou
seja, são crimes praticados em concurso), que têm conseqüências jurídicas
distintas.
Na
realidade, verifica-se um equívoco técnico, pois, os tipos penais podem ser
simples (quando o núcleo está representado por um único verbo), ou mistos
(quando o núcleo está representado por mais de um verbo) e esses se dividem em
alternativos ou cumulativos. O estupro tem o núcleo do tipo penal representado
por um único verbo “constranger”, ou seja, trata-se de um tipo simples. Quanto
à conduta, é crime de forma vinculada (somente pode ser cometido pelos meios de
execução previstos no tipo penal: violência ou grave ameaça) e de duas formas,
por parte da vítima (praticando ou permitindo que se pratique), que resultam em
três condutas típicas: (1) ter conjunção carnal; (2) praticar outro ato
libidinoso; (3) permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Assim,
entendemos que o estupro é um tipo penal simples, que pode se dividir em crime
de condutas alternativas ou crime de condutas cumulativas, de acordo com o caso
concreto.
De
qualquer forma, entendemos que a prática da conjunção carnal e de outros atos
libidinosos (exemplos: sexo oral ou anal) praticados no mesmo contexto fático
contra a mesma vítima, caracterizam crime único de estupro (e não mais concurso
material). Trata-se de uma inovação benéfica ao réu, cujo alcance é retroativo,
atingindo inclusive a coisa julgada.[11]
Se
o agente pratica vários estupros contra a mesma vítima em ocasiões distintas,
se preenchidos os demais requisitos legais, é possível reconhecer a
continuidade delitiva (sistema da exasperação). Ausentes esses requisitos, o
agente deverá responder pelos crimes de estupro em concurso material (soma da
penas).[12]
11.
Pena e ação penal
PENA
DO CRIME DE ESTUPRO – Artigo 213 do Código Penal
FIGURA
TÍPICA
FUNDAMENTO
ESPÉCIE
DE PENA
QUANTIDADE
Simples
(caput)
Reclusão
De
6 a 10 anos
Qualificadas
Pela
lesão corporal de natureza grave
§
1º, 1ª parte
Reclusão
De
8 a 12 anos
Pela
idade da vítimaentre 14 e 18 anos
§
1º, última parte
Pelo
resultado morte
§
2º
De
12 a 30 anos
Aumento
de Pena
Cometido
em concurso de duas ou mais pessoas
Art.
226, I
Aumento
de quarta parte
Se
o agente é ascendente, padrasto, tio, irmão etc.
Art.
226, II
Aumento
de metade
Se
o crime resultargravidez
Art.
234-A, III
Se
o agente transmite doença à vítima
Art.
234-A, IV
Aumento
de um sexto até metade
Com
o advento da Lei 12.015/2009, a ação penal no crime de estupro passou a ser, em
regra, de iniciativa pública condicionada à representação do ofendido, e não
mais de ação penal privada, com exceção do estupro de vítima menor de 18 anos
ou pessoa vulnerável (menor de 14 anos, portador de deficiência ou doença
mental incapacitante ou pessoa que por qualquer outra causa não possa ofertar
resistência), cuja ação é pública incondicionada (CP, art. 225 e parágrafo
único).
Ocorre
que o legislador foi omisso em relação ao estupro qualificado pela lesão
corporal de natureza grave e pelo resultado morte. Em razão disso, parte da
doutrina defende que nesses casos a ação penal também depende de representação.
A nosso ver, esse entendimento não é correto, pelos seguintes motivos: (1) não
faz nenhum sentido no crime menos grave (estupro contra menor de 18 anos) a
ação ser pública incondicionada e, no mais grave (estupro qualificado pela
lesão grave ou morte), a ação depender de representação; (2) uma lei que aboliu
a ação penal privada visando maior rigor na apuração desses crimes, não poderia
tratar de forma mais branda justamente os autores dos delitos mais graves (com
resultado lesão grave ou morte); (3) no caso de morte, diante de eventual
ausência de quem poderia representar a vítima, um crime hediondo ficaria
totalmente impune; (4) na sistemática anterior, o estupro qualificado pelo
resultado lesão grave ou morte já era de ação penal pública incondicionada.
Assim,
com base nesses motivos bem como na interpretação teleológica (objetivando
descobrir a finalidade com que a lei foi editada), entendemos perfeitamente
aplicável a disposição legal no sentido de que se num crime complexo houver uma
fato apurável por ação pública e outro por ação privada, caberá nas duas
hipóteses ação pública (CP, art. 101). Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal tem o seguinte entendimento sumulado: “No crime de estupro, praticado
mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada (STF, Súmula
608) e, desta forma, no crime de estupro qualificado pela lesão grave ou morte,
a ação penal é pública incondicionada, porque tanto a lesão grave quanto o
homicídio são crimes de ação pública incondicionada.
Nos
termos do disposto no art. 234-B, do Código Penal, os processos em que se
apuram os crimes definidos no Título VI (crimes contra a dignidade sexual)
correrão em segredo de justiça. Em segredo, evidentemente, não alcança o
acusado e seu defensor e o representante do Ministério Público. Não alcança
também a vítima, tenha ela ou não se habilitado como assistente de acusação.
Por
se tratar de crime hediondo, o autor do crime de estupro não pode ser
beneficiado com anistia, graça, indulto e fiança. A pena será cumprida
inicialmente em regime fechado, sua prisão temporária será de 30 dias,
prorrogável por igual período em caso de extrema necessidade e, no caso de
condenação, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em
liberdade (Lei 8.072/90, art. 2º).
[1]. DELMANTO, Celso, Roberto, Roberto Júnior e Fábio.Código Penal Comentado. São Paulo: saraiva, 8ª ed., 2011, p. 691.
[2]. JESUS, Damásio E. De. Direito Penal – Parte Geral –Volume 3. São Paulo: Saraiva, 20ª ed., 2011, p. 122.
[3]. Antes da Lei 12.015/2009, o crime de estupro erabipróprio, exigindo condição especial dos sujeitos ativo e passivo. Assim, somente o homem poderia ser sujeito ativo e somente a mulher sujeito passivo. Com essa lei, o atual crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, representa a junção dos antigos delitos de estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214). Assim, o crime de estupro passou a ser bicomum, ou seja, qualquer pessoa pode figurar tanto como sujeito ativo quanto como sujeito passivo.
[4]. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direto Penal – Parte Especial – Volume 4. São Paulo: Saraiva, 6ª ed., 2012, p. 51.
[5]. ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Especial – Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 145.
[6]. FELAÇÃO vem do termo latim felactio, que significa sexo oral feito no órgão genital masculino, independentemente do sexo do praticante ativo (masculino ou feminino).
[7]. cunnilingus tem origem no latim (cunnus = vulva e lingus= língua) que é uma forma de sexo oral que consiste em estimular os genitais femininos fazendo uso da língua e dos lábios, podendo o praticante ativo ser do sexo masculino ou feminino.
[8]. MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal – Direito Penal – Parte Especial – Volume 3. São Paulo: Método, 2ª ed., 2012, p. 11.
[9]. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado – Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2012, p. 525.
[10]. ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Especial – Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 150.
[11]. Nesse sentido, verifica-se que a Súmula 611 do STF autoriza o juiz das execuções penais a aplicar as inovações legislativas benéficas ao condenado, independentemente de revisão criminal.
[12]. CAPEZ, Fernando. Direito Penal Simplificado – Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 16ª ed., 2012, p. 297.
Vicente
de Paula Rodrigues Maggio
advogado
e professor
Advogado
militante formado pela UnG; mestre em direito pelo Mackenzie e doutor em
direito penal pela PUC-SP. Professor de direito penal e processo penal em
cursos de graduação e pós-graduação. Avaliador de cursos de direito pelo MEC
(pertence ao Banco de Avaliadores do Sinaes (BASis).
Fonte:
JusBrasil
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