Pedro Paulo Zahluth Bastos (professor livre-docente da Unicamp)
A
democracia corre um risco mais imediato do que o impeachment: a possibilidade
de votação do projeto para definir um teto para a dívida pública da União.
A
democracia brasileira corre um risco mais imediato do que o impeachment ilegal
contra Dilma Rousseff: a possibilidade de votação, essa semana, do projeto do
senador José Serra para definir um teto para a dívida pública da União.
Contra
o projeto de Serra, já foi publicado um manifesto assinado por economistas que
rejeitam os riscos ao crescimento do emprego e da renda, e apoiado por
intelectuais e ativistas que rejeitam a ameaça à soberania popular que o
projeto embute.
A
Carta Maior também publicou uma revista especial reunindo vários especialistas
contrários ao projeto. Aqui se argumenta que esse projeto tem forte relação com
os objetivos do golpe que o impeachment representa.
O
golpe e o uso da Lei de Responsabilidade Fiscal para fins políticos
Na
história do Brasil republicano, todo período de mobilização popular que traga
mudança de políticas públicas é interrompido por reações conservadoras que
desrespeitam a legalidade. Foi assim com o ultimato militar para que Getúlio
Vargas se “licenciasse” em 1954 para não prejudicar investigações criminais
conduzidas, ilegalmente, pela Aeronáutica na “República do Galeão”. Foi assim
também em 1964.
Em
2016, o golpe é de outro tipo: quer-se interromper o mandato de Dilma Rousseff
com base em realocação de recursos entre diferentes rubricas do orçamento
federal, uma prática recorrente na administração pública. Pior: as contas
fiscais de 2015 fecharam dentro da meta autorizada pelo Congresso no dia 31 de
dezembro, mas o pedido de impeachment é do dia 02 de dezembro! É o mesmo dia em
que o PT declarou apoiar abertura de investigação sobre as contas no exterior
de Eduardo Cunha.
Ademais,
as contas do governo em 2015 sequer foram analisadas e julgadas pelo Tribunal
de Contas da União (TCU), nem pelo Congresso. E a despeito da redistribuição de
recursos entre itens do orçamento, o governo federal alcançou a meta fiscal em
2015 porque realizou o maior contingenciamento orçamentário da história
republicana. Ou seja, a redistribuição de verbas não aumentou o volume de
gastos a ponto de ameaçar a meta fiscal. Logo, a abertura do processo de
impeachment – um golpe - mostra como a interpretação arbitrária de regras
fiscais pode ser feita para alcançar objetivos políticos.
A
reinterpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que ampara o pedido de
impeachment retira toda flexibilidade da gestão fiscal: qualquer presidente
posterior à LRF – ou seja, além de Dilma, FHC e Lula – teria sido impedido. Se
o golpe atual tivesse por objetivo moralizar a gestão fiscal, outros 16
governadores que realocaram recursos entre rubricas orçamentárias em 2015
deveriam ser objeto do mesmo processo de impeachment, assim como o
vice-presidente Michel Temer.
O
golpe e os três atalhos contra direitos sociais e políticas de desenvolvimento
É
evidente que o golpe não tem por objetivo corrigir a administração
orçamentária: seus líderes comandam uma reação conservadora contra a mudança
das políticas públicas realizadas sob amparo da Constituição Federal de 1988 a
da Consolidação das Leis do Trabalho – a CLT de 1943.
A
intenção de mudar a Constituição Federal e outras leis sociais não é segredo. O
programa do PMDB, Uma ponte para o futuro, unifica a agenda de reformas apoiada
pelo PSDB e mira reduzir impostos empresariais e direitos sociais: aumentar a
idade mínima para aposentadoria, “flexibilizar” (eliminar?) os direitos
trabalhistas da CLT, reverter a política de elevação do salário mínimo e,
literalmente, “acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no
caso dos gastos com saúde e com educação”.
É
claro que esse programa legislativo não passaria facilmente pelo Congresso.
Para contornar a resistência popular indesejável, três atalhos institucionais
facilitariam a execução do programa antipopular.
Primeiro,
o programa do PMDB defende a celebração do “maior número possível de alianças
ou parcerias regionais, que incluam, além da redução de tarifas, a convergência
de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no
Atlântico Norte”. Ora, as “normas” propostas pelos EUA são fortemente
restritivas de políticas sociais e de desenvolvimento. Assinar os tratados
significaria blindar o neoliberalismo contra políticas de governo forçadas a
respeitar tais “normas” independentemente de resultados eleitorais.
Além
disso, permitiriam, por exemplo, que corporações multinacionais que se
considerassem lesadas por políticas públicas novas (que gerassem danos por
“lucros cessantes”) pudessem buscar arbitragem extraterritorial contra o Estado
brasileiro, como fizeram os “fundos abutres” no episódio de renegociação da
dívida externa contraída durante a experiência ultraliberal argentina.
O
segundo atalho institucional é “a criação de uma instituição que articule e
integre o Poder Executivo e o Legislativo, uma espécie de Autoridade
Orçamentária, com competência para avaliar os programas públicos”. Sua missão
seria criar o “orçamento com base zero, que significa que a cada ano todos os
programas estatais serão avaliados por um comitê independente, que poderá
sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e
benefícios”.
O
objetivo dos cortes propostos por essa “Autoridade Orçamentária” é satisfazer
os credores da dívida pública acima de tudo: “iniciar o processo de sua redução
(da dívida pública) como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a
obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o
crescimento do próprio PIB... Qualquer voluntarismo na questão dos juros é o
caminho certo para o desastre.”
Se
nenhuma das duas alternativas se viabilizar, o atalho institucional e legal
mais imediato pode ser aprovado em breve pelo Senado: o projeto definindo um
teto para a dívida pública bruta proposto pelo senador José Serra, através de
subemenda ao projeto de resolução do Senado Federal (PRS no 84/2007) que
institui limites ao endividamento da União.
O
golpe e o limite da dívida pública
Em
depoimento na Comissão Econômica do Senado no dia 20 de outubro de 2015, o
Senador José Serra sugeriu que o projeto se limitaria a estimular a realização
de estudos sobre os determinantes da elevação da dívida e exigir a prestação de
contas pelo governo.
Nada
mais falso: caso o governo não alcance a meta exigida no final do prazo de 15
anos, o projeto prevê nada mais nada menos que a interrupção de novas operações
de crédito enquanto durar o excesso de endividamento, resguardada a rolagem da
dívida. O projeto não deixa claro se a “rolagem” se restringe ao principal ou
se inclui os juros. Se não incluir, o cenário de caos e paralisia de serviços
públicos é imediato. Se incluir, já seria enorme a instabilidade política e
financeira que a interrupção de novas operações de crédito pode gerar no
Brasil.
O
problema não é apenas a punição desproporcional: antes de chegar no fim do
túnel, os limites propostos pelo projeto de Serra são tão draconianos que podem
exigir cortes que não apenas inibem o crescimento econômico, mas requerem
tesouradas sobre despesas obrigatórias, sobretudo rubricas do gasto social
garantidas na Constituição Cidadã e/ou privatizações de patrimônio público.
O
pior é que os cálculos que embasam tecnicamente o projeto de Serra são equivocados.
Sua assessoria alegou que bastaria o crescimento econômico de 2,5% ao ano e um
superávit fiscal primário de “apenas” de 2,2 % do PIB, para reduzir a dívida
bruta em relação ao PIB aproximadamente de 75% do PIB para 48% do PIB entre
2020 e 2030.
A
Secretaria do Tesouro Nacional refez os cálculos da Assessoria do senador Serra
e encontrou equívocos constrangedores: a projeção do Senado simplesmente fazia
desaparecer, magicamente, quase R$ 1 trilhão da dívida pública, referente à
“redução da carteira de títulos do Tesouro no Banco Central sem nenhuma
contrapartida em nenhum outro item do ativo ou do passivo do Governo.” (Notas
Taquigráficas - 45ª - Comissão de Assuntos Econômicos,18/11/2015, 11:30h.)
Ademais,
a projeção do Senado simplesmente elimina, magicamente, o custo de juros das
operações compromissadas do Banco Central, que foram, nos últimos anos, o
principal motivo de seu crescimento. Além disso, desconsidera o próprio custo
do carregamento das reservas cambiais que, aliás, é um dos motivos aludidos
pela própria subemenda do Senador José Serra para definir a dívida bruta como
limite!
Refeitos
os cálculos, o esforço fiscal necessário para atender a regra de Serra oscila
entre um mínimo de R$ 2,5 trilhões e um máximo de R$ 7 trilhões. Em termos do
PIB, o superávit primário requerido oscila entre um mínimo de 2,4% do PIB (no
primeiro ano do melhor cenário, em que a taxa de juros real seria de 3,5% e o
crescimento do PIB seria de 4% ao ano!). E um máximo de 7,04% do PIB, no
primeiro ano do pior cenário, em que a taxa de juros real seria de 7%
(aproximadamente o valor atual da SELIC) e o crescimento do PIB seria de 1% ao
ano (o limite que adiaria o esforço fiscal por um ano).
Em
qualquer caso, a regra de Serra impõe um esforço fiscal inviável sem o corte de
direitos constitucionais. E, para mostrar que até no vocabulário o PMDB
tucanou, sem privatizações, consideradas necessárias no programa Uma ponte para
o Futuro para “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa
privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias”.
A
democracia brasileira não parece ter sido consultada sobre esse programa
ultraliberal, em qualquer dos três atalhos institucionais por meio do qual ele
pode ser realizado. A soberania popular não pode se sujeitar a mais ameaça de
golpe. Antes de barrar o impeachment, é urgente vetar o projeto de José Serra
no Senado Federal.
Créditos
da foto: reprodução
Fonte:
cartamaior
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