Navalha
na carne... dos pobres
por
Ana Fonseca
Uma
tragédia se avizinha e voa rasante sobre as casas e as vidas de milhões de
brasileiras e brasileiros.
Já
chegam à praça as primeiras informações sobre o que poderia vir a ser o governo
Temer para a área social, notadamente no Programa Bolsa Família (BF). Veiculada
em matéria publicada hoje (28/04) no jornal O Estado de São Paulo, e em
entrevista recente (25/04) do ex-pesquisador do IPEA Ricardo Paes de Barros, a
proposta é que o BF tenha foco apenas nos 5% mais pobres, sem deixar claro se o
percentual é relativo à população brasileira total ou às famílias beneficiárias
do programa.
Vejamos
as consequências, num ou noutro cenário. Tomando como referência os dados
oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), referentes a março
deste ano, o BF transfere renda para 13,8 milhões de famílias. Se o tal foco
nos 5% mais pobres for relativo a todas as famílias brasileiras (64,7
milhões/PNAD/IBGE) significa que apenas 3,2 milhões permaneceriam no programa.
Uma exclusão, portanto, de 10,6 milhões de famílias. O segundo cenário é ainda
mais perverso. Se o tal foco nos 5% mais pobres for relativo ao total de
famílias beneficiárias do BF (13,8 milhões), restaria apenas 0,7 milhão de
famílias no programa. A exclusão saltaria para 13,2 milhões!
Essas
primeiras informações disponíveis trazem uma única certeza: o BF que contribuiu
para retirar da miséria dezenas de milhões de brasileiros(as), é celebrado no
mundo inteiro e referência para dezenas de países, já não será mais um programa
de inclusão, mas de exclusão.
Na
entrevista, PB, como é conhecido o pesquisador, defende que o BF está
“inchado”.
O
método para “desinchar” é o seguinte: “o cara tem um certo nível educacional,
mora numa casa boa e num lugar com qualidade de vida”, então não é pobre e deve
ser cortado do programa, conclui. Certamente ele sabe que renda é um conceito
econômico que trata de fluxo, já móveis, utensílios e características do
domicílio são patrimônio, que é estoque. Essa confusão, proposital ou não,
descarta a lógica da proteção permanente, pois basta que o cidadão tenha
acumulado uns eletrodomésticos e tenha uma casa do Minha Casa, Minha Vida, para
virar "classe média". Portanto, “toca a tua vida aí”, diz PB.
Se
o provedor(a) de um grupo familiar ficou sem renda (fluxo) do trabalho, mas ele
conta com um certo patrimônio (TV, computador, aparelho de som) que é o
estoque, terá de se desfazer desses bens para suprir a falta de renda? Essa é a
singela diferença entre renda e estoque.
A
palavra-chave para “desinchar” é eficiência. Nenhuma palavra sobre taxação de
fortunas, impostos sobre heranças, tributo progressivo. A suposta eficiência é
dirigida aos pobres e PB deixa muito claro quem irá pagar o pato num governo
Temer: “tem gente que vai sofrer”. A eficiência é alocativa, ou seja, o governo
gasta com quem "não precisa", embora destine ao BF apenas 0,5% do PIB
e apesar de cada R$1 investido no programa adicionar R$1,78 ao PIB, segundo o
IPEA.
O
empenho nos cortes faz esquecer que 3,5 milhões de famílias já saíram do BF,
resultado de rotinas de revisão/averiguação cadastral e de desligamentos
voluntários.
Em
nenhum momento o entrevistado menciona a população rural, justamente onde se
concentra uma parcela significativa da população mais pobre, tanto em termos
monetários quanto multidimensionais. Irão acabar com o PRONAF e o MDA? A
inclusão produtiva rural será extinta? A ideia é que os jovens rurais consigam
um trabalho formal? Nada de agricultura
familiar? A intenção é estimular a
emigração?
A
abordagem sobre o PRONATEC beira ao delírio. Barros diz que não podem ser
ofertados cursos “às cegas”. Por isso faz a inacreditável proposta de entregar
um cartão a quem procura emprego para, após encontrar uma vaga, fazer o curso
apropriado. Ele desconhece a existência de mesas de pactuação locais, com os
agentes econômicos, para identificação das demandas do mercado de trabalho e
oferta dos cursos.
Serei
repetitiva: Uma tragédia se avizinha e voa rasante sobre as casas e as vidas de
milhões de brasileiras e brasileiros.
A
América Latina e o Caribe (ALC) já passaram por uma experiência
semelhante. Na década de 1980 e 1990, a
maioria dos países da região enfrentou uma crise econômica severa que se
manifestou na redução do Produto Interno Bruto e em taxa de inflação e
desvalorização sem precedentes. A receita aplicada foi chamada de “reformas
estruturais˜. O resultado foi que a população pobre de 18 países da ALC saltou
de 40,5% para 44%, entre 1980 e 2000, e a extrema pobreza se manteve incólume:
18,6%.
As
reformas significaram privatização de empresas e serviços públicos, recortes no
emprego público, alterações substantivas na previdência social, nos sistemas de
saúde etc. É por ponte semelhante que querem jogar a todos e a nossos direitos
conquistados. É o caminho de volta para o Mapa da Fome.
Paes
de Barros esteve ausente da formulação do BF, seja no governo de transição em
novembro e dezembro de 2002, seja na Câmara de Políticas Sociais, instalada em
abril de 2003, ou na equipe encarregada de apresentar a proposta de unificação
que deu origem ao BF. Mesmo assim, o entrevistado sempre foi – reiteradamente –
um entusiasta que não poupou elogios ao programa. Por que razões as fortes
críticas de “inchaço”, agora?
Indagado
sobre contatos recentes com Moreira Franco, homem forte do vice-presidente
Michel Temer, PB foi evasivo: “não estou muito conectado com o mundo”. Não é
verdade, mas é gracioso.
ANA
FONSECA é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp.
Foi Secretária-Executiva do Programa Bolsa Família (2003) e Secretária
Extraordinária do Plano Brasil Sem Miséria (2011).
Fonte:
jornalggn
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