Poeta
Augusto de Campos, que também é procurador aposentado, é incisivo ao se
posicionar em defesa da democracia; alguém que viveu e sobreviveu à ditadura
militar sabe bem o quão grave é ferir o processo democrático, como alguns
setores da oposição vem tentando fazer ao inflar uma onda golpista contra a
presidenta Dilma; "Não me sentiria bem se me calasse", afirma o
poeta; "Acho que, independente dos erros ou equívocos que cometeu o
governo, é meu dever de cidadão insurgir-me contra os argumentos falaciosos dos
que pretendem derrubar a vencedora das últimas eleições, com grave e perigosa
lesão às nossas instituições democráticas"
Do Portal Vermelho - O
poeta Augusto de Campos é incisivo ao se posicionar em defesa da democracia.
Alguém que viveu e sobreviveu à ditadura militar sabe bem o quão grave é ferir
o processo democrático, como alguns setores da oposição vem tentando fazer ao
inflar uma onda golpista contra a presidenta Dilma Rousseff. "Não me
sentiria bem se me calasse", afirma o poeta sobre sua responsabilidade
enquanto artista e cidadão de se colocar ao lado dos que defendem a soberania
do voto popular.
Leia
a entrevista na íntegra:
Vermelho:
Você recebeu recentemente a Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, com a
presença da presidenta Dilma Rousseff, em evento que contou com a participação
de Caetano Veloso. Isto significa um reconhecimento da Poesia Concreta, por
tanto tempo incompreendida? Em sua opinião, o que explica o prolongado
conservadorismo em nosso meio cultural, tão pouco generoso com novas propostas
estéticas?
Augusto
de Campos: De fato, como a cobertura da grande mídia foi minguada, a maioria
das pessoas não tem ideia do que foi esse evento, no qual, além de receber a
Grã-Cruz, fui o homenageado da cerimônia. A Bia Lessa, que a organizou,
transformou-a numa defesa e ilustração da inventividade, referida à criação de
Brasília da perspectiva da inteligência brasileira, como foi vista por Max
Bense. Elegeu a poesia concreta e Oswald de Andrade como temas dominantes, num
amplo panorama de nossa cultura. Dos parangolés de Hélio Oiticica à arte dos
indígenas, do baião de Humberto Teixeira à poesia-música de Arnaldo Antunes,
ambos agraciados, o último também participante da narração do espetáculo. Pode-se
ter uma ideia mais precisa da magnitude da cerimônia no endereço eletrônico.
[Assista ao vídeo aqui]
Um
espetáculo "verbivocovisual" desenvolvido em grandes painéis
videográficos, sincronizados com música ao vivo , que teve a participação
especial de Cid Campos e de Caetano Veloso. Este não aparece no vídeo por
restrições contratuais de sua produção, mas registrou a sua presença numa
entrevista significativa. [Assista ao vídeo aqui]
A
apresentação teve momentos emocionantes dedicados a outras modalidades de arte,
como o da entrega da Grã-Cruz às Ceguinhas da Paraíba com a sua cantoria dura e
pura, e os de homenagens às comunidades indígenas. E como o da surpreendente
execução do hino nacional em guitarra, baixo elétrico, bateria e percussão pelo
quarteto dirigido por Dany Roland, com dissonâncias que fizeram lembrar o hino
americano interpretado por Jimi Hendrix. Woodstock no Planalto. Eu, de certa
forma arrisquei-me a desafinar o tom da festa, que era toda alegria e
exuberância, introduzindo a pauta política em meu breve discurso. Nada me foi
pedido, mas eu achei que tinha que expressar a minha opinião, mais de uma vez
manifestada, de repulsa às desatinadas tentativas de derrubar a presidente
eleita. São raras as oportunidades que os poetas têm de falar, mas, na verdade,
eu, que não gosto de homenagens, a aceitei, desta feita, acima de tudo para dar
o meu recado contra os que já chamei de "impeachmaníacos".
Na
curta entrevista que dei antes do evento, no saguão do Planalto, fui ainda mais
incisivo ao pôr em relevo o impatriotismo dos que pretendem ganhar no tapetão o
que perderam na eleição. [Leia a entrevista citada aqui]
Quanto
à demora na assimilação das propostas da poesia concreta, é um fato que
aconteceu com todas as vanguardas — futurismo, dadaísmo, surrealismo — e com o
nosso modernismo. Trata-se de um fenômeno corriqueiro de comunicação: o público
tende a só aceitar como arte aquilo que já está sacramentado pelos códigos
convencionais. Tudo que é novo lhe parece estranhável e até ofensivo. Hoje,
porém, passado meio século, a poesia concreta é ensinada até nas escolas. Não
há como apagá-la da história.
Na
década de 1960, em plena ditadura militar, você e o seu irmão, Haroldo,
estudaram o idioma russo com o professor Boris Schnaiderman, na Universidade de
São Paulo, com o objetivo de traduzir autores de vanguarda como Maiakóvski e
Khlébnikov, o que se concretizou com a antologia Poesia Russa Moderna. Como o
livro foi recebido na época? O que ele representa em seu percurso poético?
O
comunismo da época era marcado pelo stalinismo, que institucionalizara como
prática obrigatória o “realismo socialista”, e perseguia os artistas modernos
como autores de “arte decadente”, da mesma forma que os nazistas os perseguiam
como protagonistas de “arte degenerada”. Mas o marxismo não-ortodoxo, simpático
às vanguardas, como o de Gramsci, além de uma geral orientação de cunho
socialista, orientavam nossa postura como cidadãos, e Maiakósvki e os artistas
da vanguarda russa eram considerados fundamentais por nós. Fomos estudar o
difícil idioma, no início dos anos 60, para tentar traduzir o poeta, e logo
percebemos que as versões que se faziam de sua obra, derivadas de edições em
língua castelhana, falseavam a qualidade de sua poesia, que é virtuosística e
extraordinariamente avançada para a sua época.
No
entretempo, sobreveio o golpe militar, e nós incrementamos nossas traduções
como uma forma de protesto, primeiro com a publicação de um volume dos poemas
de Maiakóvski, que saiu em 1967, pela editora Tempo Brasileiro, com traduções
minhas e de Haroldo, e o suporte linguístico de Boris Schnaiderman. Procurei,
propositadamente, traduzir alguns dos poemas políticos mais radicais do poeta,
como Black and White, cujo tema era o do negro cubano humilhado pelo “rei dos charutos”,
Henry Clay (com um olho na revolução cubana, que admirávamos); Hino ao Juiz,
que terminava provocativamente: “Os juízes cassam os pássaros, a dança. / A mim
e a vocês e ao Peru” (introduzi o verbo “cassar” como referência às cassações,
terminologia com a qual se começava a denominar as punições políticas dos atos
institucionais); e, por fim com o dístico revolucionário de Maiakóvski, que
aqui vai em transcrição fonética, seguido da tradução:
“Iech
ananáci, riábtchicov jui.
Dienh
tvoi posliédnii, burjui.”
Come
ananás, mastiga perdiz,
Teu
dia está prestes, burguês.
Eu
não era adepto de Luís Carlos Prestes, que, para usar de uma expressão dele
mesmo a propósito de um general seu amigo, eu considerava “um patriota
equivocado”, mas me vali do “equivocábulo” com o seu nome como provocação. Em
1968, saiu a nossa antologia Poesia Russa Moderna, pela Civilização Brasileira,
cujo editor, Ênio Silveira, era alvo das perseguições dos militares. Foi um
momento em que achamos imprescindível manifestar a nossa indignação com o
retrocesso provocado pelo golpe. Hoje, ambos os livros continuam circulando com
a rubrica da Editora Perspectiva e, felizmente, estão entre os mais procurados
pelos leitores.
A
Poesia Concreta incorporou em seu plano-piloto a conhecida palavra-de-ordem de
Maiakovski: "sem forma revolucionária não existe arte
revolucionária". Coerentes com esse princípio, os poetas concretos, em sua
fase participante, criaram poemas como Beba Coca-Cola e Mallarmé vietcong, de
Décio Pignatari, Servidão de passagem, de Haroldo de Campos, Greve e Luxo lixo,
de sua autoria. O diálogo crítico com a realidade social, com o momento
histórico, encontra-se em quase todos os seus livros, inclusive o mais recente,
Outro, publicado neste ano pela editora Perspectiva. Comente esse aspecto de
seu trabalho.
Considero
a poesia política a mais difícil de se fazer. Décio foi um precursor com o seu
Beba Coca-Cola, que é de 1957 !!! E foi o mesmo Décio que anunciou, no
Congresso de Crítica Literária de Assis, em 1962, o que chamou de “pulo da
onça” — o salto participante da poesia concreta. Na comunicação que apresentou,
então, e que depois foi publicada no primeiro número da revista Invenção,
Situação Atual da Poesia No Brasil, ele alertava para os riscos desse
empreendimento. Quanto mais político, menos poético. Mas decidimos “pisar a
garganta do nosso canto“, como Maiakovski, e tentamos seguir o seu lema, que na
época era totalmente desconhecido entre nós – “Sem forma revolucionária não
existe arte revolucionária”.
Poesia
não é sociedade beneficente, nem palco adequado para retóricas de palanque, e o
poeta que se mete nessa empreitada corre o maior e o mais frequente dos riscos:
o de exibir-se como politicamente correto, piedoso com o sofrimento dos desfavorecidos
ou mostrar-se fanatizado por suas reivindicações, e perder-se em banalidades,
preconceitos e concessões que diminuem a sua qualidade poética. Esse é o
sentido do poema visual Profilograma Pound/Maiakóvski, que depois transformei
em um morfograma digital com as vozes originais dos autores dizendo trechos dos
seus poemas, e nos quais sobrepus os perfis de Maiakovski (por Ródtchenko) e
Pound (por Gaudier-Brzeska), os dois maiores poetas políticos do nosso tempo,
de ideologias opostas. As passagens menos felizes de suas obras são as que
incorrem no fanatismo ideológico e na apologia de sistemas políticos que se
revelaram autoritários e ditatoriais. Acabaram o primeiro se suicidando e o
segundo numa jaula exposta às intempéries e a seguir internado num manicômio
judiciário, por 12 anos, sem estar louco.
Quais são os teus
projetos literários atuais?
Venho
de participar do lançamento do CD O Inferno de Wall Street / Poetas em
Movimento, de Cid Campos, com a música que ele compôs para os respectivos espetáculos
de dança, e que conta com a participação de oralizações de vários intérpretes:
a minha em O Inferno de Wall Street, com textos de Sousândrade, e também as de
Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Ricardo
Araújo, Danilo Lôbo e Lauro Moreira em Profetas em Movimento. Trata-se de
produção independente, com design gráfico meu, e que está sendo distribuída
pela Tratore. [ Veja aqui
Lanço
em 8 de dezembro a nova edição, muito ampliada, do livro de ensaios Poesia,
Antipoesia, Antropofagia & Cia, pela editora Companhia das Letras. E tenho
em preparo, para o ano que vem, Música de Invenção 2, a sair pela Editora
Perspectiva. Em projeto, uma edição bilíngue, português/inglês, de Poetamenos.
O
Brasil vive hoje um dos momentos mais delicados de sua história, com ameaças ao
processo democrático e aos direitos civis. Manifestações de intolerância e
preconceito contra mulheres, comunistas, negros e homossexuais são frequentes,
estimuladas pela mídia. Como você avalia esta situação?
Toda
a vez que pude — e são poucas as ocasiões em que se dá aos poetas a
oportunidade de expressar a sua opinião — manifestei-me contra os atentados à
nossa frágil democracia, e sou evidentemente contrário a toda espécie de
preconceito. Acho que o Brasil evoluiu muito nos últimos tempos, especialmente
no tocante aos direitos das mulheres, mas a nossa sociedade é ainda muito
conservadora, e com a sua falta de consciência política, distorcida pelo poder
econômico, elegeu um dos mais conservadores Congressos que já teve, dominado
por ruralistas, empresários, evangélicos e até defensores da ditadura. Um
Congresso que nos ameaça com retrocessos históricos como o das restrições à
legislação sobre o aborto, sob as vistas grossas de uma oposição pouco sensível
ao que não seja a busca do poder a todo preço e que está apostada em impedir a
governabilidade do Executivo, refém do Congresso. A sociedade tem que estar
muito atenta para evitar que tais retrocessos venham a ocorrer, e defender os
direitos que conquistamos a duras penas.
Qual
é a importância da opinião política de artistas, poetas e intelectuais num
momento como o atual?
Não
sou eu quem vai dar lições de civismo aos artistas, poetas e intelectuais. Cada
um que se manifeste, ou deixe de se manifestar, como quiser. Para o bem ou para
o mal, eu manifestei a minha opinião, e não é de hoje. Acho que, independente
dos erros ou equívocos que cometeu o governo, é meu dever de cidadão
insurgir-me contra os argumentos falaciosos dos que pretendem derrubar a
vencedora das últimas eleições, com grave e perigosa lesão às nossas
instituições democráticas. Tenho autoridade para isso. É que, independentemente
de ser poeta e escritor, com um trabalho incessante por quase 70 anos, sou
advogado, procurador do Estado aposentado, cargo que exerci por quase 40 anos e
no qual entrei por concurso público e não por favor de ninguém. No exercício de
minhas funções era especializado no exame da legislação em face das
Constituições estadual e federal, e me sinto à vontade para afirmar que não têm
qualquer fundamento jurídico as tentativas de impeachment da presidente. Nesse
passo, ao contraditar os “impeachmaníacos” em entrevistas que dei aos jornais
Valor Econômico (31 de julho), Correio Braziliense (2 de agosto) e à revista
Cult nº 204, de agosto) antecipei-me aos manifestos anti-impeachment de
importantes escritores, docentes universitários, juristas e advogados a que a
grande mídia deu pouco ou nenhum destaque, embora entre os seus signatários
estivessem nomes dos mais significativos da nossa cultura, como Antonio
Candido, Marilena Chaui, Dalmo Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e juristas do
porte de Fabio Konder Comparato e Marcio Sotello Felipe. Fecho com eles. Eu não
me sentiria bem comigo mesmo se me calasse. Confesso que lavei a alma com o
discurso que fiz na cerimônia da ordem do mérito e com a entrevista que dei,
antes do seu início, no saguão do Palácio do Planalto, em 9 de novembro.
Fonte:
brasil247
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