Feche
os olhos e imagine por um instante que você detém os poderes de uma divindade.
Você narra a partir de um ponto de vista privilegiado, que consegue discernir
com clareza incomparável a complexidade da realidade e sua conexão com a
normatividade. Suas decisões não fazem mais do que refletir os fatos de forma
perfeita e acabada, sem qualquer nível de distorção: são simples meios de
exteriorização de uma convicção que jamais conhece qualquer falibilidade.
Essências são extraídas de coisas e pessoas com incomparável facilidade: realidade
e alteridade se curvam diante de seu método de revelação da verdade.
Você
é firme e obstinado em seu propósito. Enviado pelos céus e movido por energias
extraídas do além, sempre mantém os olhos fixos no grande prêmio e jamais se
desvia da trajetória inicialmente delineada. Para você, a magistratura é
sacerdócio; uma profissão de fé conduzida pelo mais nobre dos propósitos:
extirpar o mal do mundo, em nome do bem da sociedade.
Sua
vida é cruzada. Seu ritual é uma prática continua de zelo pelo bem comum.
Senhor de todas as certezas, lorde de todos os soldados, você faz do trabalho
diário um empreendimento de enfrentamento constante contra o mal. Higienizar o
país é seu destino e o triunfo, algo certo e inevitável. Palavra da salvação:
toda honra e toda glória, agora e para sempre.
Você
é objeto de louvor alheio. As pessoas ostentam seu nome em camisetas, adesivos
e cartazes. Seu estandarte tremula de Norte a Sul do país: você é reconhecido
como salvador e extrai energias de seus devotos. Obtém deles forças para
intensificar ainda mais o combate contra o inimigo. Seu poder cresce a cada dia
que passa. Ele faz de você uma divindade onipotente e, logo, capacitada para
erradicar a maldade que aflora no mundo. Não é de se estranhar que você aprecie
cada vez mais a atenção que lhe é dada. Opinião pública e opinião publicada
parecem ter por você uma irrefreável paixão, absolutamente profunda e
massivamente sedimentada. Você se sente tocado por ela e faz questão de
manifestar seus sentimentos para todos que incansavelmente o bajulam. Nem por
um instante sequer você considera que possa estar equivocado. Que alguém
insinue que você atua como veículo para difusão de ódio é logicamente uma
leviandade.
Mais
do que um mero mortal, sua existência transcendeu o plano terreno: as regras
aplicáveis aos demais não valem para você. Continuamente estimulado e jamais
coibido, você saboreia a delícia do poder ilimitado que lhe é conferido. De
fato, você acredita que um juiz pode voar: nem mesmo o céu é limite para a sua
audácia. Sua vaidade atinge patamares gigantescos: nem mesmo a segurança de
seus próprios devotos parece lhe importar. Você propositalmente desconsidera
qualquer limite normativo ou ético que possa comprometer o fim que lhe é caro.
Utiliza sem o menor pudor os meios que lhe são conferidos para divulgar a
irrecusável verdade de sua palavra. Caso venham a ocorrer, danos colaterais não
serão nada mais do que perdas aceitáveis para a consecução da meta perseguida.
Sua onisciência não permite qualquer vazio. O interesse público lhe é
transparente: não pode ser nada além de um reflexo de sua própria vontade, que,
ao final, subjugou completamente a realidade.
E
assim seria, se ele, o limite, não promovesse uma alucinada reviravolta no
roteiro previamente estabelecido por sua santidade. De forma inesperada, uma
vertigem democrática surge no horizonte para usurpar o frágil solo moral no
qual assentava sua autoridade, destruída como castelo de cartas por um
relâmpago de legalidade.
Sua
onipotência não era mais que delírio e devaneio. Complexo de grandeza e abuso
de autoridade. Possível prática de crime e flagrante ilegalidade. O destino
parece ter lhe pregado uma terrível peça: suas razões não são mais do que
pálidos reflexos de uma contaminada subjetividade. Vitimada pela própria
arrogância, cai por terra a insustentável identificação com o bem da sociedade.
Tragédia até então impensável. Quem dizia que falava por todos falava por si
mesmo: refém da própria e indevidamente atribuída discricionariedade.
Resta
o lamento dramático e a entrega narrativa da própria dignidade, corroída pelo
esforço impossível de legitimar uma indefensável ilegalidade. Esgotada sua
serventia, desvelada a humanidade, resta a você o papel de cordeiro: passível
de ser sacrificado no altar do próprio autoritarismo, ainda que mostre
incredulidade diante dessa possibilidade. Talvez a sorte seja generosa e você
apenas caia na obscuridade. Lamento de um Moro, Moro das lamentações.
Equivocado até o final, ainda lhe escapa a ideia de impessoalidade. A Tragédia de
um Moro é a morte metafórica de uma pseudodivindade. Que ela descanse em paz. A
democracia agradece.
Salah
H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em
História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal:
Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a
Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen
Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em
Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.
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