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Como é possível ensinar processo penal depois da operação "lava jato"?



Depois do acolhimento da delação premiada e da leniência precisamos repensar como ensinamos Processo Penal. Isto porque falamos em princípios do processo penal, em jurisdição, ação e processo. Podemos continuar, por exemplo, a falar que a ação penal é indisponível? Com a Transação Penal da Lei dos Juizados Especiais Criminais já se criou o “jeitinho” da disponibilidade regrada, embora Geraldo Prado tivesse demonstrado que não cabia na tradição do Direito Continental, da qual, em princípio, somos herdeiros. Depois disso veio a delação premiada e a leniência. Ocupam um lugar tolerado. Entretanto, atualmente, viraram manchete. Daí que não podemos mais fingir que possuímos um processo penal único. Hoje, se quisermos ser professores minimamente sérios, precisamos rever o que ensinamos. Delação não é exceção e, acolhida, muda o sentido do processo brasileiro.

Conforme apontam Allard e Garapon: “O Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada.”[1] Neste contexto e articulando as repercussões desta constatação no campo do Processo Penal, bem assim da Criminologia, influenciadas ainda discurso da Law and Economics[2], baseado em Posner[3], pretende-se delinear que coexistem, a partir de critérios diferenciados, sistemas processuais inconciliáveis em território nacional.

Não podemos ser mais professores românticos e muito menos cínicos. Delação premiada homologada pelo  STF, prisão para delação, na mais lídima aplicação do Dilema do Prisioneiro no Processo Penal[4]leniência extintiva de responsabilidade penal e negociação do objeto e pena da ação penal, no mínimo, transformaram os pilares daquilo que ensinamos como “ação penal”.

Coexistem, atualmente, duas frequências de Processo Penal, com incongruências marcantes, incapazes de formar um sistema coeso. São tantos institutos incompatíveis com a nossa antiga maneira de pensar que, atualmente, diante da profusão de fontes e tradições, encontramo-nos com sérias dificuldades de ministrar aos alunos um Direito que possa minimamente ser próximo das novidades. Buscamos propiciar coerência que, todavia, torna-se insustentável dada a perplexidade. Elencaremos, assim, algumas dificuldades:

a) a ação penal é mesmo indisponível depois da delação premiada ou podemos simplesmente dizer que é uma exceção?

b) O juiz pode produzir prova, tendo papel de protagonista, inclusive na negociação do acordo? Existe algum resto de imparcialidade? Quais as funções reais do juiz?

c) A oralidade e o cross-examination foi (mesmo) adotada pelo 212 do CPP diante do deslocamento (matreiro) da questão para ausência de prejuízo?

d) Como compatibilizar a chamada de corréu e a confissão depois da validade da delação premiada? Qual o lugar e estatuto das declarações do delator?

e) As normas de processo penal são mesmo irrenunciáveis ou podemos falar em direitos processuais como privilégios renunciáveis pelo acusado? Em que hipóteses?

f) Como fica a conexão probatória nas cisões arbitrárias entre acusados em face do foro privilegiado? Os acusados que foram cindidos podem se habilitar para formular perguntas aos do foro privilegiado? Podem ser arrolados como informantes os acusados cindidos?

g) qual o regime da interceptação telefônica diante da volatilidade dos prazos, regras e do Ministério Público poder executar o ato? Há garantia dos dados brutos? Quem fiscaliza as possíveis interceptações frias?

h) a prisão é processual ou não é mecanismo para aplicação do dilema do prisioneiro ao Processo Penal brasileiro? Qual o papel da mídia nos vazamentos taticamente fomentados?

i) qual o limite de negociação que o Ministério Público possui nos acordos de delação? Pode negociar a imputação, perdoar crimes, fixar teto de pena por todas as condutas? Pode fixar taxa de êxito na repatriação de recursos e lavar dinheiro sujo? (se o dinheiro repatriado não tinha origem, ao se dar a comissão ao delator, não se estaria lavando dinheiro sujo, via delação?) O Juiz pode não homologar o acordo de delação, a partir de quais critérios? E, caso rejeitada, as informações já prestadas serão desconsideradas? Como?

j) se os indiciados devem ter acesso ao que já está produzido contra eles, na linha da Súmula Vinculante 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”)? Qual o estatuto de sigilo da delação?

Pode-se adotar duas posturas. A primeira é passar por cima destas questões e simplesmente continuar a ensinar como sempre se ensinou. A segunda é reconhecer que não possuímos mais um Processo Penal, mas várias versões simultâneas de Processo Penal e que a compreensão a ser utilizada dependerá dos personagens envolvidos, como já defendemos no livro da Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal.  

O momento é de perplexidade acadêmica já que o modo de aplicar e ensinar o Processo Penal herdado da tradição continental se foi. Aos poucos, sem que tenhamos nos apercebido, ainda que alguns tenham escrito sobre o tema (Geraldo Prado, Rubens Casara, Elmir Dulcrec, Rômulo Moreira, Gustavo Badaro, Fauzi Hassan Choukr, Diogo Malan, João Gualberto Garcez, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aury Lopes Jr, Nereu Giacomolli, Lenio Streck, Salah Khaled, Flaviane Barros, dentre outros), continuamos fingindo que as coordenadas em que pensamos os institutos do Processo Penal são atuais.

Nesse contexto há uma manifesta tensão entre o Direito Continental e o Direito Anglo-Saxão. Os institutos próprios de cada um dos sistemas acabam sendo intercambiados sem a devida aproximação democrática, isto é, as novidades legislativas são implementadas em tradições filosóficas distintas, daí a perplexidade de muitas das alterações legislativas recentes. Não se trata de reconhecer que a tradição Continental é melhor ou pior, dado que esta discussão é inoperante. O que importa é que as tradições implicam em práticas e modos de pensar diferenciados.

Essa lógica do acontecimento e de diálogo entre tradições precisa ser questionada, já que continuamos a ensinar um Processo Penal que anda em descompasso com os novos institutos. Para os crimes de todos os dias (furto, tráfico, roubo, estupro etc.), de fato, temos o mesmo processo penal da “ação penal indisponível”, da Jurisdição como poder-dever, incapaz, todavia, de se conformar aos novos institutos, especialmente delação e leniência. Podemos, então, aceitar acriticamente a situação? Não deveríamos nos indagar se podemos ensinar parcialmente e não seria nosso dever ético mostrar aos acadêmicos que possuímos versões em frequências diferentes?

O tema nos angustia porque estamos em frequências antagônicas que convivem sem possibilidade de coerência. Fechar os olhos sempre foi a saída mais fácil e arbitrária. Mas chegamos a um ponto de virada, do qual não podemos mais fingir, nem fugir. Ou podemos? Agosto é novo semestre.

[1] ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova revolução do Direito.  Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 07.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[3] POS­NER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003; Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, Law and Legal Theory in the UK and USA. New York: Oxford University Press, 1996; Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998; The Little Book of Plagiarism. New York: Phatheon, 2007; Problemas de filo­so­fia do direi­to. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Fonte: ConJur


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