Juiz
reconhecido mundialmente pela prisão de Pinochet se diz indignado com o risco
que a democracia corre no Brasil e compara o golpe em curso com o que ocorreu
no Paraguai e em Honduras
No
artigo à seguir, o juiz espanhol que condenou o ex-presidente do Chile Augusto
Pinochet pela morte e tortura de cidadãos espanhóis, na ditadura chilena,
Baltasar Garzón, que ficou conhecido na história da Espanha como
"super-juiz" e "juiz-estrela", reflete sobre a crise
política e institucional brasileira.
Garzón
se diz indignado com o que se passa na democracia do Brasil. "A luta
contra a corrupção é vital e deve ser prioritária em qualquer democracia, mas é
preciso estar atento aos interesses daqueles que pretendem se beneficiar da
“cegueira” que supõe a luta em si mesma", ressalta.
Ética
Política e Justiça no Brasil, por Baltasar Garzón Real*
Partindo
da consciência crítica de quem pertence a um país que em algum momento histórico
exerceu o férreo poder do colonialismo atualmente em debate entre mil
contradições e contrariedades, mas também partindo da firmeza democrática e da
convicção de defender valores universais como justiça, liberdade e democracia,
quero compartilhar com vocês meus sentimentos e algumas reflexões que tenho
feito diante da difícil situação que vive institucionalmente o Brasil.
Sinto
profundo pesar em observar que pessoas que são referências da boa política,
defensores dos direitos sociais, de trabalhadores e daqueles que são os elos
mais fracos da cadeia humana estão na mira das corporações que, insensíveis aos
sentimentos dos povos, estão dispostas a eliminar todos os obstáculos que se
lhes apresentem para consolidar posição de privilégio e controle econômico
sobre a cidadania com consequências graves para o futuro. Nessa dinâmica
perversa, os grandes interesses não hesitam em eliminar política e civilmente
aqueles que o contrariam na defesa dos mais frágeis que sempre foram privados
de voz e de palavra para decidir seus próprios destinos.
Mesmo
partindo da perspectiva de quem não vive o dia-a-dia da política brasileira,
devo dizer que sou capaz de perceber o espetáculo oferecido pelo procedimento
de juízo político que está em curso contra a Presidenta Dilma Rousseff e que
guarda semelhanças com outros que foram vivenciados por países como Paraguai e
Honduras, forjados institucionalmente por parte daqueles que somente estavam
interessados em alcançar o poder a qualquer preço.
A
interferência constante do Poder Judiciário com o fim de influenciar nesses
processos deve cessar. Por experiência, sei os riscos que representam os jogos
de interesses cruzados, não tanto em favor da justiça e sim com o objetivo de
acabar como o oponente político instrumentalizando a um dos poderes básicos do
Estado e fazendo-o perder o equilíbrio que deve preservar em momentos como
este, tão delicados para a sociedade. O judiciário deve prosseguir suas
atuações sem midiatização política de nenhum tipo, sem prestar-se a jogos
perigosos em benefício de interesses obscuros, distantes da confrontação
política transparente e limpa.
A
perda das liberdades e a submissão da Justiça a interesses espúrios pode custar
um preço excessivo ao povo brasileiro. O Poder Judiciário e seus componentes
devem resistir e defender a cidadania frente às tentativas evidentes e
grosseiras de instrumentalização interessada. O objetivo não parece ser, como
dizem, acabar com o projeto político do Partido dos Trabalhadores e seus
máximos expoentes, mas submeter à população de forma irreversível a um sistema
vicarial controlado pelos mais poderosos economicamente.
A
luta contra a corrupção é vital e deve ser prioritária em qualquer democracia,
mas é preciso estar atento aos interesses daqueles que pretendem se beneficiar
da “cegueira” que supõe a luta em si mesma. A justiça deve manter os olhos
completamente abertos para perceber o ataque ao sistema democrático que é
perceptívelna realização de uma espécie de juízo político sem consistência nem
base jurídica suficiente para alcançar legitimidade e que somente busca tomar o
poder por vias tortuosas desenhadas por aqueles que deveriam defender os
interesses do povo e não os próprios. Ou ainda daqueles que nunca disputaram
eleições e que pretendem substituir a vontade das urnas, hipotecando o futuro
do povo brasileiro.
A
indignação democrática que sinto ao acompanhar os fatos do Brasil, país pelo
qual tenho imenso apreço, me provoca profunda dor e ao mesmo tempo me compele a
expressar esses sentimentos diante daqueles que não têm pudor em destruir as
estruturas democráticas que tanto tempo levaram para serem erguidas, aqueles
que não hesitam em interferir na ação da Justiça em benefício próprio.
Ninguém
conquista um reino para sempre e o da democracia deve ser conquistado e
defendido todos os dias frente aos múltiplos ataques e isso se faz desde os
mais recônditos lugares do país, de uma mina, uma pequena fábrica, do interior
da Floresta Amazônica já tão atacada e deteriorada por interesses criminosos,
das redações dos periódicos ou plataformas televisivas que servem de tentação à
submissão corporativa, das ruas das cidades e dos púlpitos das igrejas,
das favelas e dos conselhos de
administração das empresas, das universidades, das escolas, em cada casa da família
brasileira é preciso lutar diuturnamente pela democracia. E é obrigação de
todas e todos fazer isso não somente em seu país, mas também fora, em qualquer
lugar, porque a democracia é um bem tão escasso cuja consolidação é missão do
conjunto de toda a comunidade internacional.
Tanto
o presidente Lula da Silva, a quem conheço e admiro, como a presidenta Dilma
Rousseff, com quem nunca estive pessoalmente, representaram o melhor projeto em
termos de política social e inclusiva e que, caso tenham incorrido em
irregularidades, merecem um juízo justo e direito básico à ampla defesa e não
um julgamento ilegítimo em praça pública realizado por quem não tem direito nem
uma posição ética para fazê-lo. O povo brasileiro nunca perdoará o ataque
frontal à democracia e ao Estado Democrático de Direito.
Madrid,
24 de abril de 2004
*
Baltasar Garzón Real é jurista, Magistrado e Advogado Espanhol
(tradução
Carol Proner)
Fonte:
jornalggn
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