Alguns
sonhadores acreditam que vivemos em um Estado Democrático de Direito no qual os
direitos fundamentais são sagrados, e a Constituição da República é guardada
pelo Supremo Tribunal Federal. Na verdade, porém, vivemos em um Estado policial
que atropela todas as garantias mínimas e necessárias próprias do Estado que se
pretende verdadeiramente democrático. Estamos de fato em um Estado penal, um
Estado em que prevalece o autoritarismo. Estado em que os fins justificam os meios.
Estado em que a justiça é substituída pelo justiçamento. Estado em que juízes
se transformam em justiceiros. Estado em que a vontade do tirano prevalece
sobre as garantias do devido processo legal.
No
primeiro semestre de 2008, o então presidente do Supremo Tribunal Federal,
ministro Gilmar Mendes, no voto que confirmou a liminar que deu liberdade a
Pedro Passos Junior, investigado na operação navalha, afirmou que a Polícia
Federal usa “terrorismo estatal como método”. A afirmação foi feita no relatório
do voto citado. O ministro também foi alvo de grampo ilegal feito pela PF.
À
época, o perito especialista em fonética forense Ricardo Molina encontrou
irregularidades em todas as centenas de grampos telefônicos feitos pela Polícia
Federal e que foram por ele analisados. Segundo Molina, em muitos casos, há
gravações interrompidas, palavras cortadas e seleção de trechos de conversas a
critério dos investigadores, o que torna a interpretação das gravações
subjetivas.
Lamentavelmente,
muitas dessas gravações são divulgadas pela imprensa sem qualquer crivo. Mais
drástico ainda é o fato de que, em razão desses grampos, pessoas são presas e
expostas à degradação pública sem o sagrado direito de defesa.
A
sociedade que muitas vezes aplaude as citadas medidas, tão espetaculares quanto
abusivas, precisa entender que em um Estado de Direito os fins jamais podem
justificar os meios, sobretudo se estes meios afrontam direitos fundamentais,
que, no dizer do ministro Gilmar Mendes, são aqueles que “asseguram a esfera de
liberdade individual contra interferências ilegítimas do poder público,
provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário”.
Oito
anos se passaram. Hoje, o país acorda atordoado, abismado e inebriado pelas
divulgações de interceptações telefônicas determinadas pelo juiz federal que
conduz a operação apelidada de “lava jato”.
No
dia em que o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva é nomeado
ministro-chefe da Casa Civil pela presidente da República, Dilma Rousseff, o
juiz federal Sergio Moro determina a quebra do segredo de Justiça, e a Rede
Globo divulga áudios de conversas interceptadas, inclusive entre Lula e Dilma.
Certo
é que um juiz federal, qualquer que seja ele, NÃO pode decidir sobre
interceptação de conversa telefônica que envolve a Presidência da República.
Somente, tão somente, o STF pode, de acordo com nossa lei maior — a
Constituição da República —, autorizar e determinar interceptação contra o
chefe do Poder Executivo. De igual modo, compete ao Supremo Tribunal Federal
processar e julgar, originalmente, “nas infrações penais comuns, o presidente
da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus
próprios ministros e o procurador-geral da República” (artigo 102, I, “b’ da
CR) e compete, ainda, julgar “nas infrações penais comuns e nos crimes de
responsabilidade, os ministros de Estado...” (artigo 102, I, “c” da CR).
Ainda
que inicialmente não tenha sido “grampeada” a presidente da República, e sim o
ex-presidente Lula, com quem Dilma estava dialogando, ainda assim tal
interceptação afronta os limites constitucionais. Jamais poderia ser divulgado
diálogo de qualquer pessoa interceptada com a presidente da República.
O
juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba violentou a Constituição da República e
atentou contra o Estado Democrático de Direito. Portanto, deverá ser
responsabilizado pelas suas condutas extremamente ameaçadoras e que levaram o
país, na noite do dia 16 de março de 2016, a um estado de beligerância.
Certo
que o juiz federal não agiu sozinho, a Polícia Federal e a mídia foram
determinantes na instauração do caos no Brasil. Embora os diálogos envolvendo o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente da República, Dilma
Rousseff, nada, absolutamente nada, contenham de antirrepublicano ou de ilegal,
a desordem foi instaurada, notadamente, pelo combustível jogado pela
irresponsabilidade da mídia e sua completa falta de compromisso com os valores
da democracia e do Estado republicano.
No
campo penal, em nome de uma fúria punitiva e de um fantasmagórico combate à
impunidade, o poder midiático tem afrontado os valores e princípios mais caros
ao Estado Democrático de Direito. Sob o manto de uma ilimitada liberdade de
informação e de expressão, a mídia ultrapassa todos os limites da ética e do
respeito à dignidade da pessoa humana. Investigado, indiciado ou acusado é
tratado como se condenado fosse, sem direito ao contraditório e a ampla defesa.
Os
tentáculos do poder acusatório da mídia são capazes de acachapar todo e
qualquer princípio de direito. Nesse diapasão, a presunção de inocência
esculpida na Constituição da República no título que trata dos direitos e
garantias fundamentais é completamente abandonada, passando a ser letra morta
em nossa lei maior. Como bem proclamou Nilo Batista, “a imprensa tem o
formidável poder de apagar da Constituição o princípio de inocência, ou, o que
é pior, de invertê-lo”.
Interceptações
telefônicas e de meios de comunicação, por si só, já constituem medidas extremadas
e invasivas que afrontam direitos fundamentais: a privacidade e a intimidade da
pessoa.
Ao
tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição da República de
1988 prevê em seu artigo 5º, inciso XII que: “É inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma
que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal” (grifamos). A Lei 9.296 de 24 de julho de 1996 veio
regulamentar o inciso XII, parte final, do citado artigo.
A
garantia da inviolabilidade das comunicações telefônicas (norma constitucional)
poderá, excepcionalmente, ser afastada por ordem fundamentada do juiz
competente dentro dos limites legais. Assim, não será admitida, de acordo com a
Lei 9.296/96, a interceptação de comunicação telefônica quando ocorrer qualquer
das seguintes hipóteses: I) não houver indícios razoáveis da autoria ou
participação em infração penal; II) a prova puder ser feita por outros meios
disponíveis; III) o fato investigado constituir infração penal punida, no
máximo, com pena de detenção.
Verifica-se,
portanto, que a interceptação das comunicações telefônicas é uma exceção, posto
que somente em casos extremos e, mesmo assim, quando não houver outro meio de
prova disponível, menos danoso e menos ofensivo as garantias individuais, é que
poderá ser a mesma empregada.
Embora
constitua crime “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização
judicial ou com objetivos não autorizados em lei” — pena de reclusão de 2 a 4
anos — (artigo 10 da Lei 9.296/96), não são raras as vezes que as conversas
interceptadas, sabem-se lá como, viram manchetes na imprensa escrita, falada e
televisionada comprometendo a intimidade de pessoas que nem sequer estão sendo
investigadas.
Como
bem asseverou o ministro Celso de Mello (decano do Supremo Tribunal Federal),
“o dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu,
representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode
demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste
contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram,
após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o
processo penal traduz instrumento garantidor deque a reação do Estado à prática
criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou
irracional”.
Em
livro sobre as interceptações telefônicas e os direitos fundamentais, o
professor Lenio Luiz Streck conclui acertadamente que, “sem os devidos
cuidados, o Estado investigador colonizará a nossa já tênue e devassada
privacidade. Será um panóptico institucionalizado! Por isso, a necessária
cautela. Afinal, estamos no Brasil, onde, na guerra contra o crime, quem
(sempre) perde (mais) é a cidadania”.
O
que ocorreu no Brasil foi um verdadeiro assalto ao Estado de Direito. A
Constituição da República foi estuprada. A Presidência da República, devassada.
A democracia, violentada. Resta saber quem será responsabilizado pelos crimes
praticados contra a legalidade democrática e contra o Estado Democrático de
Direito.
Fonte:
ConJur
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