No 247:
Lula
depõe no circo. FHC, em casa
A
melhor forma de avaliar o espetáculo produzido em torno do depoimento de Luiz
Inácio Lula da Silva prestado à Polícia Federal, na manhã de hoje, consiste em
estudar as circunstâncias de depoimento semelhante prestado por Fernando
Henrique Cardoso, onze anos atrás. Em 2005, à mesma PF, quando fazia três anos
que passara a faixa ao sucessor, FHC teve direito a um tratamento exemplar pela
civilidade e respeito aos direitos humanos. Sequer se pensou em condução
coercitiva por uma razão muito simples: facultou-se ao ex-presidente o direito
de ser ouvido em casa.
Em
26 de janeiro daquele ano, três delegados subiram ao 8º andar de um edifício
ocupado por Fernando Henrique em Higienópolis, como registra o Termo de
Depoimento que ilustra essa reportagem. Ele foi ouvido numa investigação que
envolvia um dos episódios mais obscuros de seu governo -- contas clandestinas
no paraíso fiscal de Nassau-Bahamas, suspeitas de armazenar bilhões de dólares
de investidores brasileiros, fossem investimentos legítimos, autorizados por
lei, fossem recursos de caixa 2 e, como muitos suspeitavam, dinheiro de
corrupção.
O
caso tornou-se particularmente complicado, para o governo tucano, depois que se
soube que o delegado Vicente Chelotti, diretor geral da Polícia Federal, havia
ultrapassado vários degraus da investigação, para chegar ao Caribe, de onde voltou com os documentos
originais das contas clandestinas. Investigado pela corregedoria da PF, muito
curiosa para entender uma iniciativa fora do padrão, Chelotti disse que havia
cumprido uma ordem do presidente da República. Para sanar dúvidas, o delegado
indicou o próprio FHC como testemunha de defesa.
Como
fica claro pelo documento publicado nesta página, "o depoente confirma ter
determinado a Vicente Chelotti ou alguém de sua inteira confiança, que se
deslocasse até Nassau para obter o citado documento, o seu original."
Fernando Henrique também confirmou um dos pontos intrigantes do caso: a de que
"não fosse dado conhecimento do conteúdo daquele documento para
ninguém." Quando os delegados quiseram saber a razão para o segredo, FHC
explicou que não queria "dar curso a uma chantagem". Esclareceu que,
além de envolver ele mesmo, a "chantagem" poderia implicar "dois
ministros de Estado, o governador de São Paulo." Lembrando a morte de
Sérgio Motta, um de seus homens de confiança e tesoureiro do PSDB até a morte,
em 1998, recordou que, se fosse acusado, este "não poderia
defender-se."
Um
delegado não se conformou e insistiu na razão do segredo. O
"depoente" ampliou os argumentos: "respondeu que sua
determinação foi em razão de que os termos daquele papel poderiam induzir a equívocos
que causariam problemas políticos e econômicos ao país." O policial
perguntou se ele achava que sua preocupação era "preservar os interesses
do país." FHC "respondeu que sim." O termo do depoimento
encerrou-se poucas linhas depois.
O
principal ensinamento do episódio não envolve culpas e suspeitas contra cada
um, mas o tratamento diferenciado entre Fernando Henrique e seu sucessor. FHC
foi ouvido na tranquilidade de sua casa sobre um depoimento ao qual não poderia
se furtar -- pois era testemunha. Também pode alegar razões patrióticas para
fazer segredo sobre o conteúdo de contas secretas no exterior. Empregou um
diretor-geral da PF para ter certeza de que não haveria vazamentos e ninguém
achou que deveria dar maiores explicações a respeito.
Retirado
de casa ao primeiro raio de sol, a condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da
Silva foi o primeiro lance de um conjunto de medidas marcadas pela vontade de
produzir espetáculo através da humilhação. Não faz sentido do ponto de vista
das garantias fundamentais previstas pela Constituição, já que prestar, ou não depoimento é um direito da defesa, que
pode ou não exercê-lo. O raciocínio é simples. Da mesma forma que uma pessoa
tem o direito de ficar em silêncio durante um interrogatório, não pode ser obrigada
a deslocar-se perante um delegado para prestar explicações que não deseja. Tem
todo direito de aguardar, em casa, pelo curso da Justiça.
"Assistimos
a uma nova versão de um velho instrumento arbitrário aplicado contra os mais
fracos e desprotegidos," afirma um jurista ouvido pelo 247. Ele se refere
a velha "prisão para averiguações," um eufemismo empregado para
manter pessoas trancafiadas sem nenhuma razão plausível, abolido após a
democratização.
Ainda
que a doutrina mais rigorosa não aceite essa exceções, pois sempre envolve a
ameaça de emprego de violência do Estado contra uma pessoa presumidamente
inocente, nas investigações policiais é comum aceitar-se o uso de
"condução coercitiva" quando uma pessoa é convocada e falta ao
depoimento sem maiores explicações. Nenhum desses casos poderia ser aplicado a
Lula, que nunca deixou de prestar
depoimentos sempre que foi chamado --ainda que, em teoria, não fosse obrigado a
fazer isso.
Ontem,
o argumento empregado pela Polícia Federal para justificar a "condução
coercitiva" de Lula era a preocupação com sua segurança. Como mostra a
jurisprudência-FHC, se este era o verdadeiro motivo, bastava interrogar o
presidente em casa. Possivelmente, em segredo, como também se fez como se fez
em janeiro de 2005, no apartamento de Higienópolis. Havia muito mais segurança
e risco zero de tensões fora de hora. O problema: e o circo?
Pois
é. Se havia uma preocupação com a segurança de Lula, ela não combina com a
decisão de conduzir o ex-presidente para prestar depoimento num posto da
Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas. O local é um conhecido ponto de
passagem de uma clientela normalmente adversária dos governos petistas desde
que a distribuição de renda tornou as passagens aéreas uma mercadoria acessível
aos mais pobres -- e despertou o preconceito dos mais endinheirados, gerando
cenas inesquecíveis de xingamentos e desaforos, que alimentaram os telejornais
pelo dia inteiro.
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