“Quem
não quer aplicar novos remédios deve esperar novos males.”
Francis
Bacon
A
frase utilizada como introdução a este breve estudo amolda-se com perfeição à
infeliz realidade, cada dia mais comum na sociedade contemporânea: a exposição
de vídeos íntimos nas mídias eletrônicas e nas redes sociais.
Notícia
veiculada no dia 23/10/2013 revela o caso de uma jovem de 19 anos, moradora de
Goiânia, a qual passou cerca de 2 meses reclusa, em razão da divulgação e
disseminação viral de um vídeo em que ela e o ex-namorado mantinham relações
sexuais (leia mais em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2013/10/projeto-quer-estender-lei-maria-da-penha-para-crimes-virtuais.html).
A
faceta mais chocante desse fato advém da divulgação do nome completo, do
endereço do trabalho e do número do celular da vítima. Segundo a reportagem, ao
menos 500 mil pessoas já acessaram o vídeo. Como resultado da indevida
exposição, a jovem ofendida parou de estudar, de trabalhar, não sai mais de
casa e nem atende ao telefone.
Ainda
conforme noticiado, o Deputado João Arruda (PMDB/PR) encaminhou ao Congresso
Nacional uma proposta cujo conteúdo prevê que a Lei Maria da Penha (Lei n.
11.340/06) seja estendida a crimes dessa natureza. Segundo o Deputado,
“qualquer divulgação de imagens, informações, dados pessoais, vídeos ou áudios
obtidos no âmbito de relações domésticas, sem o expresso consentimento da
mulher, passe a ser entendido como violação da intimidade”.
De
plano, penso que não deve passar em branco o registro de que a tecnologia,
fruto do saber humano, da investigação voltada à evolução e ao bem viver, tem,
em verdade, se tornado uma nova “arma” para a prática de todo o tipo de
atrocidade contra nossos semelhantes. Em seu tempo, Aldous Huxley concluíra que
“as palavras nos permitiram elevar-nos acima dos animais, mas também é pelas
palavras que não raro descemos ao nível de seres demoníacos.” Transportando o
pensamento do festejado escritor para os dias atuais, junto às palavras vem a
tecnologia permitir que os inescrupulosos desçam a tais níveis demoníacos.
Pois
bem, em suas disposições preliminares, a Lei Maria da Penha dispõe em seu art.
2º:
“Art.
2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades
e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e
seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”
Mesmo
a leitura mais rasa do dispositivo permite concluir que a divulgação de vídeos
íntimos na internet viola os direitos mais sagrados da mulher, em especial a
sua saúde mental. O caso em comento deixa isso bastante claro, ao revelar que a
jovem que teve sua intimidade devassada pelo ex-namorado, de forma tão
hedionda, retraiu-se, permanecendo em casa, sem estudar, sem trabalhar, sem
comunicar por telefone, enfim, pode-se dizer que a vitalidade dessa jovem foi
brutalmente subtraída. Assim, claro está que sua saúde mental foi violada.
Adiante,
no art. 4º, o mesmo diploma legal estatui que:
“Art.
4o Na interpretação desta Lei, serão
considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as
condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e
familiar.”
Na
ementa da lei, está claro que o seu fim social é “coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher”. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada de
modo a garantir à mulher a mais ampla proteção contra os atos de violência
contra ela praticados. Assevera-se que, como a própria lei deixa claro, a
violência de que trata não se circunscreve à violência física, ao ato de sofrer
espancamentos ou de ser privada do direito de ir e vir. Em muitos casos, a
violência psicológica é tão devastadora quando a mácula física em si. A
violência moral quase sempre deixa marcas indeléveis no ser humano. Tanto é
verdade que, hodiernamente, ganha força em nossos tribunais a tese do “direito
ao esquecimento”, tão marcantes que são as recordações dolorosas que nos
acompanham ao longo da vida.
Sobre
o sofrimento psicológico advindo da violência praticada contra a mulher, o
dispositivo subsequente o prevê expressamente, sendo que, no inciso III,
estende a aplicação da lei a “qualquer relação íntima de afeto”, havendo ou não
coabitação. Eis o teor das normas (grifos meus):
“Art.
5o Para os efeitos desta Lei, configura
violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial:
(…)
III
– em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”
Extrai-se,
ainda, do conteúdo normativo em comento, detalhe bastante relevante: não é
necessário que o agressor conviva coma vítima; é suficiente que o agente tenha
convivido com a ofendida, como ocorreu no presente caso, em que o vídeo íntimo
foi supostamente divulgado pelo ex-namorado da jovem, aparentemente em razão de
não ter aceitado o fim do relacionamento. Aliás, é muito comum que atos dessa
natureza, isto é, a exposição da intimidade do casal após um rompimento não
desejado por parte do homem, resultem na exposição pública da mulher, a qual,
culturalmente, em razão de um deletério e odioso machismo ainda enraizado em
muitos “homens”, em situações como esta ainda é enxergada de forma
preconceituosa, lamentavelmente recebendo a pecha de “galinha”, “puta”,
“piranha”, “vagabunda” etc.
Ainda
com relação à violência psicológica, a Lei Maria da Penha não se limitou apenas
a declarar que a ofensa psíquica configura violência doméstica e familiar; foi
além, definindo no art. 7º, II, o que é a violência psicológica, estando os
dispositivos assim redigidos:
“Art.
7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
(…)
II
– a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.”
Pois
bem, vejamos a situação da jovem citada na reportagem à luz da norma acima
transcrita:
1.
A vítima deixou de sair de casa após o ocorrido: isso evidencia
constrangimento, humilhação, isolamento, ridicularização e limitação do direito
de ir e vir;
2.
A vítima parou de estudar: nesse caso, resta clara a perturbação do pleno
desenvolvimento, já que a educação é um direito fundamental, inscrito na
Constituição da República como um direito social (Art. 6º da CRFB/1988);
3.
A vítima parou de atender ao telefone: isso implica na limitação de suas ações,
já que a liberdade de falar ao telefone restou suprimida, certamente por receio
de ser ainda mais humilhada por pessoas que, como o autor da ofensa, seja ele
quem for, são inescrupulosas;
4.
A vítima se declarou humilhada:consoante trecho da entrevista, a garota revelou
que “Moralmente e virtualmente, o que eu consegui ler e o que eu consegui
receber é humilhante”.
No
campo do direito material, não restam dúvidas quanto à possibilidade de
aplicação da Lei Maria da Penha à violência praticada pelo meio virtual. Isso
fica bem claro quando se lê no inciso II do, art. 7º, da lei, que estará
caracterizada a violência psicológica quando a ofensa for praticada mediante
qualquer conduta causadora dos danos descritos na referida regra. Ora, se
qualquer conduta é apta a deflagrar a violência, dentre todas as possibilidades
nelas está compreendida a exposição não autorizada de vídeos íntimos.
Prosseguindo,
passa-se a uma breve análise das medidas de urgência a serem adotadas em casos
tais, com vistas a fazer cessar ou ao menos diminuir os efeitos do ato danoso.
Sendo
o caso levado ao conhecimento do juiz, prevê o art. 22, e seu §1º, da lei em
comento:
“Art.
22. Constatada a prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá
aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes
medidas protetivas de urgência, entre outras:
(…)
§
1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras
previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as
circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério
Público.”
Pois
bem, o leitor que se remeter ao rol de medidas protetivas inscritas nos incisos
do artigo em referência verificará que eles não preveem solução específica para
os casos em que a violência é praticada com a utilização de meios eletrônicos.
Nada
obstante, o § 1o, acima transcrito deixa claro que o juiz poderá lançar mão de
outros expedientes previstos na legislação em vigor (grifei). O destaque retro
serve para demonstrar que o juiz, valendo-se do chamado “poder geral de
cautela”, está autorizado a investigar em outras fontes normativas a existência
de medidas aptas a garantir a segurança da ofendida, devendo-se observar que,
nesse caso, o vocábulo segurança deve ser interpretado de forma ampla, pois,
tratando-se de violência psicológica, praticada por meio virtual, fica claro que
o isolamento e o direito de ir e vir da vítima podem ser entendidos como uma
insegurança psíquica resultante da ofensa.
Sendo
assim, o juiz pode, por exemplo, determinar, de imediato, que o administrador
da página responsável por hospedar o conteúdo não autorizado (foto, vídeo etc.)
o retire do ar, eis que sua divulgação também configura ilícito civil, cuja
responsabilização é independente da penal. Nesse caso, não há óbice para que,
observando o fim social da Lei Maria da Penha, o juiz se valha, por exemplo, de
soluções previstas na lei civil, já que o fragmento “legislação vigente”
abrange todo o arcabouço legislativo. Como exemplo, cite-se o art. 21 do
CC/2002, in verbis:
“Art.
21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do
interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar
ato contrário a esta norma.”
Por
todo o exposto, não restam dúvidas, salvo melhor juízo, de que a Lei Maria da
Penha é aplicável aos casos de crimes virtuais. A exposição da intimidade
alheia, sem autorização, seja a que título for, jamais deve ser tolerada. Pior
ainda quando a exposição pública se dá com o especial fim de humilhar,
degradar, coisificar a mulher, alçando-a a um suposto patamar de criatura
indigna de respeito. Os fins sociais da Lei n. 11.340/06 autorizam ao Poder
Judiciário, seja por meio de suas próprias disposições, seja por meio de outros
diplomas legais em vigor, a rechaçar todo ato de violência contra a mulher. Ao
mesmo tempo em que há aqueles que se valem da velocidade e facilidades da
internet para a prática do mal, com o mesmo vigor, e na forma da lei, deve o
estado garantir à mulher existência digna.
O
mal praticado é o mesmo; somente o meio é novo. Cabe ao Estado, através das
autoridades competentes, ministrar um novo remédio.
Fonte:
emporiododireito
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