(Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo) |
Por Aldo Fornazieri
Publicado no JornalGGN.
POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política de SP
A cada dia que passa, João Doria se revela menos o prefeito de todos os paulistanos e mais o prefeito de uma facção radical. Prima pelo desrespeito a adversários, a cidadãos, a sindicalistas, a trabalhadores e ao seu próprio secretariado. Manifesta uma clara vocação para humilhar os outros. Mais ofende do que agrega; mais agride do que une. Despreza um princípio que deveria ser cardeal na conduta de todo governante: promover a concórdia dos governados, a paz e o entendimento com todos.
Como principal magistrado do município, deveria buscar sempre a mediação racional para resolver os conflitos. Mas faz o contrário: os estimula, com práticas de arruaça política. Se, pela sua esperteza e inteligência, Doria deixava dúvidas e esperanças acerca de seu potencial de evoluir para a condição de um líder político efetivo, aos poucos, pela atitudes agressivas e facciosas com que se conduz, vai consolidando a impressão de que trilhará cada vez mais o caminho dos vaidosos e dos inconsequentes.
No contexto da greve geral que parou o Brasil, Doria verbalizou várias agressões contra grevistas, trabalhadores e sindicalistas. Classificou-os de preguiçosos e vagabundos, entre outros tipos de ofensa. Cultiva um solene desprezo pela alteridade, pelo outro, pela diferença. Vangloria-se de acordar cedo, definindo-se, desde a campanha eleitoral, como um trabalhador. Esmera-se em aparecer vestido de gari e de outras fantasias para criar uma imagem de algo que não é.
Há uma indignidade na conduta de Doria ao travestir-se, por mero proselitismo político, de trabalhador. Embora possa acordar cedo, ser hiperativo e trabalhar muito, pelas categorias analíticas da sociologia e da economia, ele, na condição de empresário, é um capitalista. Possui meios de produção e aufere (ou auferiu antes de ser prefeito) a sua renda desses meios.
Trabalhador, de fato, é um conceito amplo que, de modo geral, indica aquele que vive da sua força de trabalho, vendendo-a. Nos tempos modernos, trabalhador veio sendo considerado, legal e formalmente, como aquele que realiza uma atividade a partir de um contrato de assalariamento, de acordo com a lei, na medida em que as relações de trabalho foram cada vez mais legalizadas e reguladas pela ordem estatal. Aqui também está implicada a venda da força de trabalho.
O empresário ostentação e o capitalista asceta
Definitivamente, Doria não é um trabalhador. A indignidade desta comparação reside no fato de que as condições de vida de Doria comparadas com as dos trabalhadores são drasticamente distintas, brutalmente desiguais. Como empresário e capitalista, Doria tem um capital declarado próximo dos duzentos milhões de reais.
Vive numa mansão nos Jardins, tem empregados como serviçais e já chegou a ser processado na Justiça do Trabalho. Dispõe de muitos recursos e meios de vida, de deslocamento, de fruição em termos de viagens, cultura, lazer, gastronomia etc. Dispõe de helicóptero e jatinho, segundo noticiário da imprensa.
O verdadeiro trabalhador não tem nada disso de que o Doria dispõe. Vive uma vida de sacrifícios e de carecimentos. Se acorda às 4 ou 5 horas da manhã para trabalhar, não o faz por decisão própria e por prazer, mas porque é obrigado. Vive cansado, dorme pouco, perde horas no trânsito. O trabalho exaure as suas forças e energias com o passar dos anos.
Chegará à velhice e terá uma aposentadoria miserável, que será ainda mais precária se a reforma da previdência, que Doria apóia, for aprovada. Doria não tem por que se preocupar com aposentadoria, com plano de saúde, com as vicissitudes da velhice. Terá recursos para enfrentar tudo isto sem o temor de ter uma vida indigna nos tempos finais da existência.
Enquanto Doria vive no conforto de uma mansão luxuosa e frequenta a opulência das festas dos salões dos Jardins, milhões de trabalhadores não têm casa, pagam o aluguel ou prestações intermináveis da casa própria. Muitas vezes, falta-lhe o pão na mesa, a alegria nos rostos, o brilho nos olhos, porque suas vidas são de padecimentos e angústias. Diante dessas e de muitas outras diferenças, Doria deveria sentir vergonha na cara e não declarar-se mais o “João trabalhador”. Que se declare empresário e gestor, e isto estará certo.
Já que não dá para comparar o empresário e capitalista Doria a um trabalhador verdadeiro, tome-se como termo de comparação o proselitismo e a vanglória que ele faz de si mesmo por trabalhar muito e acordar cedo, com a conduta e as atitudes de Antônio Ermírio de Morais, conhecido pela sua austeridade, pelo seu despojamento, por trabalhar mais de 12 horas por dia e ainda por fazer hora extra no Hospital da Beneficência Portuguesa, já que dedicou boa parte de sua vida à assistência social.
Ao que se sabe, Antônio Ermírio nunca teve o desplante hipócrita de declarar-se trabalhador ou mesmo de vangloriar-se por acordar cedo e trabalhar muito. Teve um estilo de vida marcado pela ascese e foi avesso ao luxo e às festas dos altos círculos da elite branca dos Jardins. Usava ternos surrados, era econômico em pares de sapatos por ter apenas dois pés, dirigiu por décadas seu próprio carro para ir ao trabalho e dispensava seguranças. Sabia que era empresário e capitalista e honrava a sua condição com humildade, sem a vaidade e a ostentação de um Doria.
Doria não é gentil, nem como prefeito e nem como homem.
Ao receber flores de uma moça, neste domingo, dia 30 de abril, em “homenagem aos mortos das marginais”, ele atirou-as ao chão, faltando com o respeito tanto com a moça, quanto com os mortos. Com essas atitudes agressivas e belicosas, ele vai deixando um rastro de perplexidade nos munícipes, que passam a vê-lo como um arrogante, como um chefete medieval que se considera dono da cidade. Ao demitir Soninha Francine da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social impôs-lhe uma humilhação pública. Passa por cima de secretários, desrespeitando-os, quase que diariamente.
Declarando-se fiel a Alckmin, manipula todos os cordões da infidelidade, estimulando sua candidatura presidencial, seja pela via do MBL, seja nos salões da ostentação nos Jardins ou seja, ainda, através dos empresários seus amigos do Lide, com a promessa de abrir-lhes as portas de negócios fabulosos no futuro.
Doria não mostrou ainda a que veio. Vangloria-se de ter zerado a fila das consultas, mas os hospitais públicos estão mandando pacientes que precisam de cirurgia para casa, pois não tem vagas, não tem equipamentos, não tem médicos e nem remédios.
A cidade não está nada linda: esburacada, com semáforos queimados para todos os cantos e com a violência crescendo assustadoramente. Moradia, educação e assistência social enfrentam vários problemas. Programas sociais e culturais vão sendo podados.
O marketing e o proselitismo podem muita coisa, mas não podem tudo. Aos poucos, os paulistanos vão caindo na real e percebem que a vida no bairro não mudou ou está mudando para pior. Banheiros perfumados podem mudar as aparências e o odor, mas não mudam o esgoto a céu aberto de vários bairros, a falta de zeladoria e o lixo espalhado. O marketing e o proselitismo político têm data de validade e o João precisará fazer bem mais do que a ostentação do título de “trabalhador” se quiser manter parte do seu capital político e eleitoral e o benefício da dúvida que muitos paulistanos ainda lhe concedem.
Fonte: DCM
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