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Como me tornei um Pataxó médico: a conquista de um povo



Recentemente, colei grau na Universidade Federal de Minas Gerais, mais precisamente no dia 23 de dezembro de 2016. Poderia ser apenas mais um número se não refletisse ainda uma realidade rara. Sou Pataxó e me tornei médico. E o que esse retrato significa em nosso país?

Em se tratando de um país multicultural e multiétnico, esse recorte deveria ser comum, visto os direitos garantidos dessas minorias. Mas a realidade é bem diferente daquela inicialmente pensada. Falar de mim significa falar de todo um povo a qual eu represento. Pretendo aqui relatar um pouco sobre meu povo e abordar algumas questões relevantes em nossa luta.

Falar da minha história significa falar de vários aspectos da luta de um povo. Cada conquista significa reconhecimento e valorização cultural. Represento, assim, toda a luta de um povo resistente e ativo. Para entender o real significado desse ponto desejo abordar os temas mais significantes e que de alguma forma se relaciona com a minha graduação.


A ideia de indígena (e não índio) hoje ainda é distorcida pela maioria da população. Ser indígena não tem a ver com viver isolado na mata, pintado, pelado, carregando seus traços típicos e sendo lembrado em um calendário a cada ano como um ser místico. Ser indígena está ligado a noção de territorialidade – nossa maneira de viver, nossa relação com a terra, nossas inter-relações nos mais diversos campos.

A nossa imagem está romantizada por uma literatura brasileira não-representativa como o personagem Peri de José de Alencar. Então, quem quiser nos conhecer sugiro que procure por leituras de autores indígenas – Eliane Potiguar, Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Edson Kayapó, entre tantos outros. Tenha em mente que mesmo indígenas e tendo em comum vários aspectos, somos diversos, carregamos uma riqueza cultural.

Pare de achar que indígena está ligado a imagem.

Há indígenas de fenótipos diversos. E há pessoas que têm facies indígenas, mas que nunca moraram numa aldeia. Não é incomum relatos de indígenas que escutam: “Você é indígena? Mas você não parece”, “Mas índio usa celular?”, só pra citar os mais simples questionamentos equivocados e pre-conceituosos.

Além disso, temos várias etnias (e não tribos) e moramos em aldeias espalhadas pelo país. Tudo isso para mostrar que os termos que a população não-indígena utiliza para referir-se a nós centra-se basicamente em termos de indígenas do norte da América (Apaches), mostrando, assim, que não se conhece muito a nosso respeito.

Nós indígenas (pouco mais de 800 mil – IBGE 2010) mantemos nosso contato (e respeito) com o meio ambiente, nossos rituais (bem como nossos trajes para tais ocasiões), nossas artes, nossos costumes. Ao mesmo tempo conquistamos vários espaços, além daqueles já tão conhecidos. Estamos em Universidades em todo o país nos mais diferentes cursos abastecidos pelo desejo de trazer melhorias outras a nossas comunidades.

A sociedade como um todo produz os mais diversos tipos de conhecimentos. E porque nós não podemos absorver tais conhecimentos em virtude de nosso crescimento? Acreditamos que tais tecnologias estão à nosso favor. O acesso a esses conhecimentos não nos tira o conhecimento ancestral já acumulado e que é valorizado diariamente.


Usamos sim tecnologias. Temos indígenas médicos, advogados, nutricionistas, professores, artistas, autônomos, etc. Porque podemos ser o que quisermos sem deixar de sermos indígenas. Ser indígena não é um estado e sim uma condição, está em nós.

Infelizmente em minha época de estudo não tínhamos escola nas aldeias aqui na região, portanto os pais que queriam oferecer conhecimento a seus filhos tinham que leva-los para estudar na Vila de Cumuruxatiba. Mas, com a luta dos mais velhos e mesmo sob o impedimento pelo PARNA – Descobrimento, resolvemos construir nossa escola. A sua construção se deu em 2005 e hoje contamos com turmas de Ensino Médio em determinadas aldeias.

Resistência é a nossa palavra.

Sempre olhamos a educação como um dos meios de manter nossa cultura, de mostrar que estamos lutando e que não vamos desistir. Nossa resistência tem um referencial e ela se chama Zabelê, a matriarca da aldeia. Ela foi nosso pilar, já não está entre nós, mas deixou um legado único e nos é inspiração. Manteve-se firme nos momentos mais difíceis, onde dizer-se indígena era motivo de chacota e dos mais diversos tipos de exclusão e ameaça em uma região onde impera o coronelismo até os dias atuais.

Inicialmente, algumas vezes escondíamos nosso traço cultural para nos manter vivos. Por exemplo, nos espalhamos em diversas religiões para podermos defender a nossa cultura, nos submetemos aos trabalhos mais servis a fim de termos o sustento de nossas famílias. Hoje estamos, aos poucos, retomando o nosso espaço, defendendo nossa cultura.

Zabelê reafirmava nossa presença e encantava todos com sua simplicidade e firmeza na luta – ela nunca se cansou de lutar. Ajudou-nos a recuperar palavras do nosso Patxohã (língua do tronco Macro-Jê considerada extinta) e garantir assim, juntamente a outros mais velhos, o estudo e ensino de nossa língua.

Posso dizer que consegui trilhar esses passos iniciados pelos mais velhos e estar nessa posição nos dá esperança de mudança, de conquista. Espero que as novas gerações aproveitem toda a conquista que os mais velhos adquiriram até aqui e que surjam novas vitórias.

A nossa saúde ainda é precária. Temos nossos curadores, rezadeiras, parteiras (com nossos chás, emplastos, banhos) representando nossa cultura ancestral e foi com esse conhecimento que fui criado e estamos conservando. Em relação ao serviço público de saúde, contamos aqui na região com uma Equipe de Saúde composto por médico, enfermeiro, dentista e técnicos para atender as aldeias pela SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

A equipe atende uma aldeia por turno normalmente. Ter uma equipe de saúde é importante, mas está longe de ser o ideal qualitativo de saúde, onde a tecnologia (hoje importante) é quase ausente e não dispomos de facilidade para exames laboratoriais de imagem ou serviço de urgência.

Mas essa realidade não é a mesma em nosso país como sabemos. Muitas aldeias estão localizadas em lugares onde o acesso é bem mais difícil. Nesses locais a própria presença de médicos é um sonho. Então, muita luta ainda estar por vir, tanto na permanência de médicos quanto na construção de uma estrutura básica para que se esse serviço prestado possa ser realizado.

Vou contar um pouco como foi a minha trajetória.

Quando decidi fazer Medicina (na época estava no 3º período de C. Biológicas pela Universidade do Estado da Bahia – Campus X) levei em consideração esse cenário. Meus parentes souberam do projeto da UFMG com o vestibular para o curso regular oferecido a indígenas, como realidade já em outras universidades. O projeto é piloto em seu aspecto de suplementação de vagas, por criar duas vagas (além das já existentes) em cada um dos seis cursos oferecidos (Medicina, Enfermagem, Ciências Biológicas, Odontologia, C. Sociais, Agronomia) além da moradia e permanência – o que representa uma conquista dos nossos povos junto à UFMG.

A partir disso me sugeriram realizar o vestibular visto a necessidade de médico fixo na região. Normalmente, os profissionais trabalham por poucos anos e se mudam e sempre estamos à procura de médico. Além disso, a continuidade do serviço não se realiza. É quase como começar do zero. Tudo isso sem falar que não dispomos de uma estrutura básica para o serviço nas aldeias.

Bom, foi tendo avaliado essa situação que decidi acatar a sugestão e iniciei o processo. Na primeira fase do programa é necessário, através das assinaturas das lideranças reconhecidas pela FUNAI, a aprovação da aldeia para que você estude.

Depois desse processo deferido fui a Belo Horizonte realizar a vestibular que constava de questões objetivas de matérias do Ensino Médio adaptadas à questão indígena e redação com tema cultural específico. Na época tinha apenas uma conhecida em Belo Horizonte que me hospedou por algumas horas em sua casa. Fiz o exame e voltei no mesmo dia, pois não podia ficar mais um dia.

Ver meu nome na lista de aprovados foi uma mistura de pensamentos: ansiedade de enfrentar uma cidade como Belo Horizonte, tristeza de ficar longe da família e felicidade pela conquista do meu povo.

Minha comunidade, é claro comemorou. Mas foram dias de preocupação antes de ser chamado para realizar a matrícula.

Alguns me diziam da presença elitizada que compunha o corpo discente do referido curso e a distância que isso significava. De não ter nenhuma referência familiar na região. De sofrer algum preconceito ou até mesmo violência.

Fui com receio, mas fui.

Na época da matrícula, conheci os outros indígenas e ficamos sabendo ali que teríamos de começar a estudar na próxima semana. Inicialmente, tivemos alguns problemas, inerente a todo começo de projeto, como problema com bolsas, que foram sanados junto à CAEI (Comissão de Acompanhamento dos Estudantes Indígenas).

Morar em Belo Horizonte foi uma experiência para a vida, onde tive que me acostumar com o seu ritmo acelerado, sua geografia, seu clima, seu padrão alimentar bem diferente do que eu estava acostumado.

Até hoje acho que não me adaptei, sobrevivi.

Na faculdade fui acolhido, para meu alívio, por uma turma especial. Fiz amizades que me ajudaram durante todo o percurso. Não sei o que seria sem eles. Foram várias horas de estudos, professores dos mais variados tipos (exemplos positivos e negativos). Estágios fundamentais. Por outro lado tive que deixar de lado alguns hobbies por algum tempo, como a escrita, o desenho e o artesanato, fazia parte para o objetivo final.

É importante falar um pouco da saúde nessa altura desse texto. Afinal, um indígena fazendo medicina deve pensar na ambivalência dos conhecimentos.

O direito à saúde é um direito universal. Dito isso, acredito que os dois conhecimentos – tradicional e o não-indígena – sejam complementares – podem coexistir, há espaço para os dois, porque o objetivo maior é a saúde e todos os meios devem ser utilizados para tal.

Nossos índices de saúde são inferiores quando comparados àqueles da sociedade não-indígena. Esse quadro se agrava quanto mais se caminha para as aldeias distantes. Doenças de países subdesenvolvidos (infecto-parasitárias) ainda estão presentes em massa e são as principais causas de óbitos. Esses são desafios constantes a serem superados.

Isso traz à tona outro desafio que estamos vivendo recentemente.

Não há como garantir os nossos direitos sociais, culturais, sem o nosso acesso à terra.

Sem ela não tem como manter nossa cultura em pé.

O território onde vivemos ainda não é demarcado, embora o estudo sociológico já esteja publicado (julho/2015). O Território Indígena Kaí-Pequi (Aldeias: Kaí, Dois irmãos, Pequi, Tibá, Gurita, Alegria Nova, Monte Dourado, Mucujê e Tauá) é sobreposto ao Parque Nacional do Descobrimento – um parque de uso integral -, INCRA, fazendeiros e isso nos traz grandes problemas, tendo como resultado a não garantia de nosso patrimônio cultural material e imaterial.

É necessário o reconhecimento de nosso território, para que todos os outros direitos possam ser cumpridos.

Recentemente (19 de Janeiro), houve uma reintegração de posse pelo MPF de Teixeira de Freitas e tivemos nosso território com nossas escolas e casas derrubadas, sem falar em constantes atentados contra nós. Hoje ainda seguimos em nossa retomada.

Quem puder ler “Barra Velha – o último refúgio” de Cornélio Vieira de Oliveira poderá conhecer melhor sobre nossa história e acompanhar nossa luta em busca da demarcação de nossa terra.

No fim o que queremos, no mínimo, é o respeito à nossa cultura.

Quantas vezes não somos atacados por nossa presença em Universidades, principalmente aquelas do Sul do país. Quantas vezes não ficamos sabendo de religiões (que dizem pregar o bem) ofender nossos ritos e costumes, num posicionamento de superioridade que a elas não é dado. Quantas vezes histórias de violência contra nossos povos são vivenciadas constantemente. Quantas vezes temos que nos proteger da imposição de outras culturas, ideias sobre nossa.

Chegamos até aqui também por simpatizantes e apoiadores das causas indígenas. É de incontestável importância a ajuda grandiosa que nos é oferecida por eles – são professores, antropólogos, advogados, civis da sociedade em geral.

Somos donos de nossa própria voz e desejamos assumir cada vez mais nossa independência no que nos diz respeito, sem necessidade, assim, do histórico paternalismo estatal.

Que colações de grau de indígenas sejam cenas constantes em futuro próximos em todo o país e possamos lutar por mais conquistas.

Awêry (obrigado).



Zig Oliveira Pataxó

* Sou Vazigton Guedes Oliveira, Pataxó, médico, desenhista, escritor, artista, viajante.

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