Uma cena que se repetiu em 2016: a presença constante dos batalhões de choque das polícias militares nas ruas do país reprimindo protestos e cercando parlamentos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21) |
Marco Weissheimer
Estado de exceção, golpe, delação, criminalização, impeachment, grampos, vazamentos, condução coercitiva, prisões… Essas foram algumas das principais palavras que frequentaram o cenário político brasileiro em 2016. Esse cenário, de janeiro a dezembro, foi dominado por uma crise que parece longe de acabar e que teve na derrubada da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 com mais de 54 milhões de votos, o seu fato principal e mais grave. Uma denúncia percorreu os doze meses do ano: a violação do Estado Democrático de Direito e a instalação de um estado de exceção no país. Em janeiro, durante o Fórum Social Mundial Temático de Porto Alegre, várias vozes expressaram temores e anteciparam movimentos que acabariam se materializando ao longo do ano.
Em um debate intitulado “Democracia e Desenvolvimento em Tempos de Golpismo e Crise”, no auditório Araújo Viana, o presidente nacional do PT, Rui Falcão, afirmou que o Brasil estava assistindo ao surgimento de um estado de exceção dentro do estado de direito. “O instrumento do habeas corpus está sendo proscrito por setores do Judiciário com apoio da mídia. Está em vigor a ideologia do punitivismo. Há pessoas sendo condenadas na mídia antes do devido processo legal. Nenhum combate à corrupção, por mais amplo que seja pode representar um risco à democracia”, disse Falcão. O ex-presidente nacional do PSB, Roberto Amaral, também advertiu sobre os riscos que estariam ameaçando a democracia brasileira. “Estamos vivendo uma tentativa de aniquilamento das forças populares e da esquerda no Brasil. O PT é o alvo principal agora, mas não se enganem, não é o único. O que eles querem é destruir o PT e depois todos os demais partidos de esquerda”, assinalou.
A Operação Lava Jato e a agenda do impeachment
No final de janeiro, o então vice-presidente Michel Temer (PMDB) disse, durante uma visita à Paraíba, que a possibilidade de impeachment da presidenta Dilma tinha perdido força. “Eu acho que perdeu força. Eu confesso que há tempos tinha mais força, consistência. Mas acho que hoje perdeu muito a consistência”, afirmou. No entanto, a oposição ao governo Dilma iniciou o ano priorizando a pauta do impeachment. No dia 23 de fevereiro, líderes da oposição assinaram o “Manifesto pró-impeachment” e criaram um comitê para ações de apoio, com a participação dos movimentos Brasil Livre (MBL), Brasil (MBR) e Vem pra Rua, entre outros. Uma das primeiras iniciativas desse grupo foi criar uma pessoa jurídica que pudesse receber doações em dinheiro para patrocinar ações em todo o país. Enquanto isso, a Operação Lava Jato pedia a prisão do publicitário João Santana, marqueteiro das campanhas de Dilma Rousseff e da campanha da reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006.
O mês de março foi marcado por uma ofensiva do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula. |
A condução coercitiva de Lula
O mês de março foi marcado por uma ofensiva do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente. No dia 3 de março, Moro decretou a prisão preventiva de João Santana. No dia seguinte, expediu um mandado de condução coercitiva de Lula executado com um forte aparato policial e midiático. O ex-presidente chegou a ser levado para o aeroporto de Congonhas onde deveria ser colocado em um avião rumo a Curitiba. Em um episódio nebuloso, um oficial da Aeronáutica teria barrado a operação realizada pela Polícia Federal. Os advogados de Lula denunciaram a ação da Lava Jato, classificando-a como “arbitrária, ilegal e injustificável, além de constituir grave afronta ao Supremo Tribunal Federal”. A condução coercitiva de Lula desencadeou uma série de atos em todo o país em defesa do ex-presidente e denunciando a seletividade política e os excessos que estariam sendo cometidos por Moro e procuradores do Ministério Público Federal envolvidos com a Lava Jato.
Moro e o vazamento ilegal de grampos telefônicos
Mais dois fatos envolvendo Lula sacudiriam o país em março. No dia 16, o Palácio do Planalto anunciou a indicação do ex-presidente como ministro chefe da Casa Civil. No mesmo dia, o juiz Sérgio Moro retirou o sigilo da Lava Jato e divulgou um grampo telefônico que interceptou, ilegalmente, uma conversa entre Lula e a presidenta Dilma Rousseff. Amplamente divulgada pelos meios de comunicação do país, a conversa provocou uma forte reação dos setores que defendiam o impeachment de Dilma. O objetivo de Moro era um só: impedir a posse de Lula como ministro da Casa Civil, o que, de fato, acabou acontecendo.
A conduta do juiz Sérgio Moro foi duramente criticada pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal. Em entrevista ao Sul21, Marco Aurélio condenou o comportamento de Moro: “Ele não é o único juiz do país e deve atuar como todo juiz. Agora, houve essa divulgação por terceiro de sigilo telefônico. Isso é crime, está na lei. Ele simplesmente deixou de lado a lei. Isso está escancarado. Não se avança culturalmente, atropelando a ordem jurídica, principalmente a constitucional”, afirmou. Mais tarde, Moro admitiu que errou, emitiu um protocolar pedido de desculpas ao Supremo e não se falou mais no assunto.
Apesar de ser alvo de uma série de denúncias de envolvimento em casos de corrupção, Eduardo Cunha conduziu todo o processo de impeachment na Câmara. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil) |
Eduardo Cunha, o condutor do impeachment
Enquanto isso, o processo de impeachment de Dilma avançava no Congresso. Os acontecimentos se aceleraram. No dia 18 de março, dois dias depois do vazamento do grampo telefônico por Moro, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, deu início aos trabalhos da Comissão do Impeachment, abrindo o prazo de dez sessões ordinárias para a apresentação da defesa por parte da presidenta Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo, avançavam no Congresso projetos retirando ou precarizando direitos trabalhistas conquistados nas últimas décadas. Entre eles, os projetos de ampliação da terceirização, da diminuição da idade para o ingresso no mercado de trabalho de 16 para 14 anos, da redução da jornada de trabalho e de salário, da possibilidade de ampliação de horas extras para o trabalhador rural e da extinção da multa de 10% por demissão sem justa causa, entre outros. Essa era a fatura apresentada por setores da classe empresarial liderados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para apoiar o impeachment de Dilma.
Os atos das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo
Durante os meses de março e abril, atos políticos organizados por partidos, sindicatos e movimentos sociais organizados em torno das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo levaram milhares de pessoas às ruas em todo o país em defesa do mandato da presidenta Dilma e contra o avanço do processo de impeachment sem a existência de um crime de responsabilidade determinado. No dia 11 de abril, porém, a Comissão Especial do Impeachment aprovou, por 38 votos contra 27, a admissibilidade da abertura do processo de impeachment. Seis dias depois, no dia 17 de abril, o plenário da Câmara aprovou, por 367 votos a favor e 146 contra a abertura do processo de impeachment, encaminhando o mesmo para o Senado.
Apesar de ser alvo de uma série de denúncias de envolvimento em casos de corrupção, Eduardo Cunha conduziu todo o processo de impeachment na Câmara. Somente no dia 5 de maio, o ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava Jato no STF, determinou o afastamento de Cunha do mandato de deputado federal e da presidência da Câmara, atendendo a um pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. No dia seguinte, a Comissão Especial do Impeachment no Senado aprovou por 15 votos a cinco o parecer do relator, Antonio Anastasia (PSDB-MG), favorável à admissibilidade do processo de impeachment. No dia 12 de maio, o plenário do Senado aprovou, por 55 votos a 22, a admissibilidade do impeachment, determinando o afastamento da presidenta Dilma Rousseff por um período de 180 dias até a votação final da matéria pelo plenário do Congresso Nacional. O vice-presidente Michel Temer assumiu interinamente a presidência da República.
Mesmo antes da votação do processo de impeachment, o interino Michel Temer começou a desmontar a estrutura do governo Dilma. (Foto: Agência Brasil) |
Governo interino inicia operação desmonte
Mesmo antes da votação do processo de impeachment, o interino Michel Temer começou a desmontar a estrutura do governo Dilma, extinguindo ministérios e desmobilizando programas em diversas áreas. Uma das características do novo ministério anunciado por Temer foi a total ausência de mulheres. Segundo o novo chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, isso se deveu ao fato de que “os partidos não indicaram mulheres” para os respectivos postos.
As mudanças não se resumiram a troca de nomes nos ministérios. No dia 15 de junho, o governo interino apresentou a parlamentares de sua base aliado a Proposta de Emenda Constituição (PEC) que congela por até 20 anos investimentos em áreas como saúde, educação, segurança e infraestrutura. Pela medida, os gastos públicos totais serão reajustados com base na inflação oficial do ano anterior. Chamada pelo governo de PEC do teto para os gastos públicos, essa proposta se tornaria um dos principais eixos da disputa política no segundo semestre.
O arcabouço ideológico do governo Temer
Segundo avaliação de Maria Fernanda Coelho, ex-presidente da Caixa Econômica Federal (no governo Lula) e ex-secretária-executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário (no governo Dilma), as medidas provisórias (MPs) 726 e 727, editadas pouco depois do afastamento de Dilma Rousseff, representaram o “arcabouço ideológico” do governo Temer. A primeira tratou da redução de ministérios e a segunda criou o chamado Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). A MP 727, na essência, assinalou, significou a retomada do processo de desestatização da economia. “Elas (as MPs) representam de fato o desmonte de todas as políticas públicas que a gente arduamente conquistou nos últimos anos”, assinalou Maria Fernanda Coelho em um debate realizado pela Fundação Perseu Abramo no dia 16 de junho.
Com o processo do impeachment avançando no Senado, Eduardo Cunha foi perdendo força. No dia 7 de julho, renunciou à presidência da Câmara, fazendo críticas ao PT e desejando sorte ao interino Michel Temer. Uma semana depois, no dia 14, Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi eleito como presidente da Câmara dos Deputados para um mandato tampão até fevereiro de 2017.
No dia 31 de agosto, o Senado aprovou, por 61 votos a 20, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. (Marcelo Camargo/Agência Brasil) |
A consumação do golpe no Senado
Finalmente, no dia 31 de agosto, o Senado aprovou, por 61 votos a 20, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. No mesmo dia, Michel Temer foi empossado definitivamente na presidência da República. Apesar de tirar o mandato de Dilma, o Senado decidiu, por 42 votos a 36, manter os seus direitos políticos. Chegou ao fim, assim, o processo iniciado em dezembro de 2015, quando Eduardo Cunha aceitou a peça apresentada pelos advogados Miguel Reale Jr., Janaína Paschoal e Hélio Bicudo, acusando Dilma de ter cometido crime de responsabilidade fiscal. Entre as acusações estavam a edição de três decretos de crédito suplementares e as operações que ficaram conhecidas como pedaladas fiscais, que se tratavam de atrasos no repasse de recursos do Tesouro aos bancos públicos responsáveis pelo pagamento de benefícios sociais, como o Plano Safra.
Neste mesmo dia, Dilma fez um pronunciamento afirmando que o golpe não foi dirigido apenas contra ela, mas contra os direitos trabalhistas, o direito à moradia e à terra, direto à educação, saúde e cultura, direito dos jovens protagonizarem sua história, direitos dos negros, indígenas, mulheres, e LGBTs. “Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, a machismo e a misoginia mostraram suas feias faces”, afirmou.
Após serviço feito, Cunha é cassado e preso
No dia 12 de setembro, o principal articulador do processo de impeachment, deputado Eduardo Cunha, foi cassado na Câmara dos Deputados por 450 votos contra 10. Pouco mais de um mês depois, Cunha foi preso, dia 19 de outubro, no âmbito da Operação Lava Jato. Consumado o processo de impeachment, a agenda política de seus organizadores seguiu avançando no Congresso. No dia 5 de outubro, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 5467, flexibilizando as regras de exploração do Pré-sal. O projeto acaba com a prioridade da Petrobras para a exploração dessas reservas de petróleo, abrindo-a para a participação de empresas estrangeiras.
A vitória da direita nas eleições municipais
As eleições municipais de 2016 resultaram em mais uma derrota para as forças de esquerda no país, que perderam a disputa nas principais cidades. Além da vitória da direita, em particular do PSDB, a disputa foi marcada pelo aparecimento e eleição de representantes de forças de extrema-direita nas câmaras municipais. Com cinco prefeituras conquistadas no segundo turno, o PSDB terminou a eleição municipal com o maior número de capitais: sete. O partido já havia vencido no maior colégio eleitoral do país, São Paulo, no primeiro turno, e em Teresina. No segundo turno, ganhou em Belém, Maceió, Manaus, Porto Alegre e Porto Velho. O PMDB ficou com quatro prefeituras: Boa Vista, Cuiabá, Florianópolis e Goiânia. O PDT ganhou três, todas na região Nordeste: Natal, Fortaleza e São Luís. O PT, que havia vencido em quatro capitais em 2012, ganhou só uma em 2016, em Rio Branco, ainda no primeiro turno.
A aprovação da PEC 55: vitória do setor financeiro
No dia 13 de dezembro, na mesma data em que, há 48 anos, era aprovado o Ato Institucional n° 5, foi aprovada em segundo turno no Senado a PEC 55 (que tramitou como PEC 241 na Câmara), congelando gastos públicos, inclusive com saúde e educação, por 20 anos. Carro-chefe da agenda política dos articuladores da derrubada da presidenta Dilma, essa PEC transfere para o setor financeiro recursos que, até então, vinham sendo utilizados para financiar políticas públicas.
Militantes e dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram presos sob a acusação de integrarem uma “organização criminosa”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21) |
A criminalização dos movimentos sociais
A ruptura da ordem democrática no Brasil em 2016 teve como consequência também a implementação de uma política de criminalização de movimentos sociais, articulada por setores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Um dos casos mais emblemáticos dessa ofensiva foi a prisão de militantes e dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob a acusação de integrarem uma “organização criminosa”. Luiz Batista Borges e José Valdir Misnerovicz foram presos nos dias 14 de abril e 31 de maio, respectivamente, em ação uma articulada entre Poder Judiciário de Goiás, Secretaria Estadual de Segurança daquele Estado e também do Rio Grande do Sul, que apoiou a operação que levou à prisão de Misnrovicz em Veranópolis. Os militantes foram presos com base na Lei 12.850/2013, sob a acusação de integrarem uma “organização criminosa”, no caso o MST.
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, denunciou dia 4 de julho, em Porto Alegre, que o Brasil vive em 2016 um cenário de crescente violência no campo e de criminalização de comunidades indígenas, quilombolas, de militantes do MST e também de movimentos sociais urbanos. Segundo ela, uma das expressões institucionais deste processo de criminalização de movimentos sociais foi a CPI Funai-Incra, presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), que pediu o indiciamento de várias lideranças desses movimentos. Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcelo Lavenère criticou o papel desempenhado pelo Poder Judiciário neste processo de criminalização. O Judiciário no Brasil, assinalou Lavenère, ainda reflete as origens de um Brasil patrimonialista e submetido às oligarquias locais.
Esse processo de criminalização também atingiu as mobilizações estudantis, que envolveram a ocupação de escolas e universidades por todo o país, e movimentos sociais de luta por moradia e outros direitos. Se as palavras “estado de exceção”, “golpe” e “criminalização” marcaram o cenário político brasileiro em 2016, elas tiveram como contrapartida imagética a presença constante dos batalhões de choque das polícias militares nas ruas do país reprimindo protestos, cercando parlamentos e garantindo a efetivação da agenda que iniciou o ano com o processo de impeachment e chegou a dezembro com o país mergulhado em um clima de insegurança e incerteza quanto ao futuro.
Fonte: sul21
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