O
caso do sem-terra assassinado no RS comprova o quão diferentes são as garantias
devidas aos direitos humanos quando comparadas com os patrimoniais.
Jacques
Távora Alfonsin*
A
companheira, a filha e o pai do agricultor Elton Brum da Silva, assassinado
pelas costas por um policial militar, durante a execução judicial de um mandado
de reintegração de posse, no dia 21 de agosto de 2009, em São Gabriel,
ajuizaram uma ação de indenização contra o Estado do Rio Grande do Sul, com
base na responsabilidade civil deste, prevista em lei, pelas ações dos seus
servidores públicos.
A
sentença reconheceu o direito em causa e condenou o Estado a pagar uma
indenização por dano moral sofrido por essas pessoas, no valor de R$100.000,00
para cada uma. Para a filha, o mesmo julgado reconheceu o direito de ela
receber uma pensão de um salário mínimo regional.
No
dia 29 de janeiro passado, a 9ª Câmara cível do Tribunal de Justiça do RS,
reformou a sentença, e o fez em reexame necessário (processo nº 70067526939),
já que nem as/os familiares do Elton, nem o Estado vencido na ação, interpuseram qualquer
recurso contrário à dita sentença.
Sublinhe-se
isso: nem o Estado vencido recorreu da referida sentença. Por unanimidade,
mesmo assim, com parecer favorável do Ministério Público atuante naquele
processo, a Câmara entendeu que o valor da indenização por dano moral deve ser fixado em “R$ 50.000,00 (cinqüenta mil
reais), para cada uma das autoras (companheira e filha do falecido), e R$
40.000,00 (quarenta mil reais) para o pai da vítima, diante das
particularidades do caso em concreto, especialmente à condição econômica das
partes, a extensão do dano, a punição ao ofensor e a busca do caráter
pedagógico da indenização.
Para
o pensionamento da filha menor “fixar a quantia de um salário mínimo nacional,
reduzido o percentual de 1/3, levando-se em conta que se presume que 1/3 dos
rendimentos seria utilizado para a própria manutenção do falecido.”
Não
faltaram argumentos de muito peso em favor dessa drástica redução, lembranças
doutrinárias e acórdãos até de Tribunais sustentando “legalmente” que, em casos tais, deve-se
evitar um tal “locupletamento”, garantindo-se esse “caráter pedagógico da
indenização”.
O
julgado todo, se for minimamente considerada a causa pela qual o Elton foi
assassinado, escandaliza, cria uma indignação mais do que justificada nos
familiares do Elton e a quem quer que seja dotado de um sentimento mesmo
rudimentar de justiça.
Não
se lê uma palavra sequer, no acórdão da 9ª Câmara Cível, referindo, por
exemplo, o fato de o país testemunhar com muita e triste frequência, decisões
judiciais determinando desapossamento de terra, terminarem como aquela que
acabou com a vida do Elton. Também ali não se lê nada sobre o fato notório de a
vida desse pobre jovem agricultor ter sido interrompida pelo criminoso atraso
dos Poderes Públicos em efetivar a reforma agrária, a que têm direito milhões
de pobres sem-terra do Brasil, desde que o latifúndio aqui se implantou matando
índias/os, quilombolas, grilando terras, desrespeitando posses centenárias,
comprando registros, manipulando leis, corrempendo funcionários, montando CPIS
em favor de seus privilégios, manipulando a mídia, enganando o povo, cercando e
humilhando gente pobre sem defesa e apoio.
Algum/a
das/os nossas/os leitoras/es recorda ter havido nesses casos o reconhecimento administrativo ou judicial
do locupletamento ilícito, esse sim, dessa barbárie covarde dever indenizar os
danos patrimoniais e morais que ela causou, causa e continuará causando às/aos
sem-terra e ao país? Alguém tem alguma notícia de os Tribunais brasileiros
recomendarem educação “pedagógica” para dar um fim nessa injustiça
historicamente repetida?
Pelo
contrário, o que mais se ouve é o louvor do mérito desbravador dos bandeirantes
no passado, feito à custa de milhares de Eltons, agora imitado por uma
determinação judicial de que o próprio dano moral por eles/as sofridos com a
morte de um parente “não exagere” na mensuração do valor dessa tragédia e,
mais, isso sirva de lição para elas/es e outras/os vítimas da mesma injustiça
social pela qual continuem morrendo.
Com
muito raras exceções, algum/a juiz/a se atreveu a reconhecer nessas violências
a cumplicidade do Estado com a covardia inspiradora dessas violências, dessas
agressões à dignidade humana, desses mandados próprios dos Estados de exceção,
inconstitucionais não só por ferirem a letra dos direitos sociais de gente
pobre que a obriga a ocupar terra para fazê-los valer, mas principalmente pela
desumanidade própria das suas execuções, uma delas responsável por esse
assassinato.
A
morte do Elton não foi considerada suficiente para encher o poço das lágrimas e
do grande sofrimento dos seus familiares e companheiras/os. A Nona Câmara do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul entendeu de direito e de justiça lhes acrescentar
não só a diminuição dos valores com que a sentença mal e mal tentara compensar
o que nenhum dinheiro é capaz de pagar, como ainda advertiu-os de que, assim o
fazendo, contribui com a educação deles e de todas/os quantas/os
brasileiras/os, na sua mesma condição reivindicatória, ousarem, no futuro, se
socorrer do Judiciário para “fazer lucro” (?!) em cima da morte de um parente.
Um
verdadeiro despropósito. É de se imaginar a vibração e o entusiasmo das/os
inimigos das/os sem terra e da reforma agrária com esse julgamento: “Bem feito!
Aí está mais um julgado, como muitos outros, forrados por doutas opiniões
doutrinárias, para empoderar mais ainda o domínio crescente que temos sobre
administradores públicos, leis e tribunais.”
Como
outros antecedentes jurisprudenciais, com pretensão “docente” como esse,
pode-se fazer uma idéia precisa das razões pelas quais as garantias devidas aos
direitos humanos fundamentais sociais valem tão pouco como o valor aqui julgado
justo para quem confiou no Judiciário, pretendendo ver minimamente reparada a morte desse
agricultor.
A poderosa influência das/os
inimigas da reforma agrária - pretenda ou não o acórdão desse reexame
necessário - vai tirar o maior proveito desse julgamento. Vai-se locupletar
ilicitamente com a reforma da sentença, baseada na circunstância de o valor da
indenização devida pelo Estado, por força de um assassinato como o sofrido pelo
Elton, é tão insignificante que uma Câmara de Tribunal de Justiça corta fundo
os valores da indenização devida aos
seus familiares e ainda justifica essa
redução pelo razão de, mantidos os
valores fixados na sentença, eles acabarem lucrando com isso.
Não
se sabe se, na 9ª Câmara Cível do TJRS, alguém tinha conhecimento de que o
sangue do Elton fecundou a terra de onde o mesmo Poder Judiciário determinou a
sua saída, assim provocando a sua morte e provando o injusto e infeliz
propósito dela. A famosa Fazenda Southall de São Gabriel, por trágica ironia do
seu destino, é hoje um assentamento de agricultoras/es com direito a reforma
agrária, testemunhando não ter sido em vão a sua morte se somado a tantas/os
outras/os sem-terra assassinados por defenderem esse direito.
Não
serve de nenhum consolo para os familiares do Elton esse martírio, mas ele
comprova, por mais uma trágica vez, quão diferentes são as garantias devidas aos direitos humanos
fundamentais sociais quando comparadas com os patrimoniais. A rapidez com que o
mandado judicial de reintegração de posse acabou por assassiná-lo, levou-o para
o túmulo no dia seguinte ao da sua morte, acompanhado por multidão de
sem-terras, movimentos sociais, entidades de defesa dos direitos humanos e
apoiadoras/es do MST. Já o processo
crime que apura a responsabilidade do policial militar que o matou, não tem a
mesma pressa. Há quase seis anos vai tramitando ao ritmo do desinteresse
habitual e costumeiro com que o Poder Judiciário caminha, honrosas exceções a
parte. Daqui a pouco prescreve e o nosso chamado Estado de direito dá por
cumprida mais uma das suas injustas atuações. Como a história ensina, a
esperança de esse cortejo fúnebre ter seu fim não morre no coração de quem,
como Elton Brum da Silva, ressuscita em cada ocupação de terra usurpada pelo
poder do latifúndio atestando ser ela mãe, fonte de vida comum, acessível a
todas/os as/os suas/seus filhas/os, e não propriedade exclusiva de quem dela
abusa, explora e mata como matou o
Elton.
Créditos
da foto: reprodução
Fonte:
cartamaior
0 Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do BVO - Blog Verdades Ocultas. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia os termos de uso do Blog Verdades Ocultas para saber o que é impróprio ou ilegal.