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Outro modo de interpretar o Brasil (III)

No campo econômico, foi desfeita a política de longo prazo, substituída por uma atuação de varejo, pulverizada geográfica e setorialmente.
Reginaldo Souza (1); Fábio Guedes Gomes (2); Thiago Chagas (3); José Murilo Pliligret (4), Elizabeth Matos Ribeiro (5); Mônica Matos Ribeiro (6)

Alguém já disse que o Brasil tem dificuldade em mudar. Apesar de o voluntarismo improvisador ser visto por alguns como uma virtude, em verdade, trata-se de um artifício protelatório para evitar que mudanças mais necessárias nos processos sócio-culturais sejam levadas a cabo – principalmente, quando essas mudanças implicam benefícios para a maioria pobre e miserável deste País. Embora se saiba que a renda gerada por uma nação é resultado do trabalho coletivo, sempre que o Estado promove alguma política pública direcionada para setores ou pessoas mais carentes os detentores de riqueza – sejam os empresários ou rentistas – pensam e agem sempre no sentido de impedir a sua efetivação. Imaginam que o custo da política pública será financiado com o seu dinheiro, confiscado pelo Estado mediante a elevação de impostos ou outro meio menos convencional. Ocorrendo isso, idealizam que, no futuro, poderão estar tão pobres quanto os atuais e dependentes das mesmas políticas públicas de proteção, voltadas para a distribuição de renda. E isso é inadmissível!

Observando o processo histórico brasileiro, sequer descobrimos qual é a nossa vocação com clareza. Não obstante, é possível identificar propostas de mudanças mais articuladas na construção de um movimento ou de um pensamento nacional sobre o assunto, inclusive em nossa literatura. Nesse campo, Machado de Assis é pioneiro, iniciando o realismo literário no Brasil com o romance: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881 – interpretando o Brasil da época e o Rio de Janeiro em particular com ironia, indiferença e, às vezes, pessimismo.

O protagonista é o típico representante da classe ociosa (7) que faz do País o Grande Armazém de onde retira o quanto e quando para viver a boa vida ao dizer que – Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto; assim como parece transformar os lares cariocas em espaços de fornicação nas folgas de sua ociosidade – não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. (8)

Se com o realismo de Machado de Assis passa-se a fazer uma crítica ao modo de vida das classes superiores e ociosas, com Lima Barreto, em o Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), vai-se fundo na questão do nacionalismo, na luta para se construir um projeto para o Brasil, cabendo como recompensa por esse protagonismo sempre um final amargo, negativo e triste – indicando que a luta não compensa? Policarpo é preso e enviado à Ilha das Cobras por ordem expressa do Marechal Presidente Floriano Peixoto.



O movimento modernista, que se inicia em 1916, proclama mudanças no estilo de nossa estética, sobretudo uma estética que fosse expressão da nossa realidade e comprometida com as mudanças requeridas. De tudo o que se produziu nas artes e na literatura, nada expressa melhor a compreensão do Brasil de então e o sentimento da mudança do que o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, lido em 1924. A ideia central era mostrar que a aversão das elites a mudanças tem sido tão estúpida que a antropofagia passou a ser a única forma de vida socialmente possível. Essa conclusão que podia parecer desvairada, própria da juventude que protagonizou a Semana de Arte Moderna de 1922, hoje se apresenta aos nossos olhos como uma realidade muito cruel e incontestável!

Nas mesmas circunstâncias históricas, Gilberto Freyre denunciava em seu Manifesto Regionalista, lido em 1936, que as “mudanças” processadas pelos governos do Brasil republicano estavam agravando as desigualdades – tanto pessoal quanto regional – e destruindo a cultura brasileira. Era preciso que abandonássemos o aceite apressado do “estrangeirismo” e olhássemos mais atentamente para o nosso acervo cultural mais útil como elemento de superação dos nossos problemas. Que academia dos nossos dias está preocupada e que intelectuais a ela vinculados seriam capazes de confrontar a ordem estabelecida que tanto tem impedido o futuro da nação, tal como fizera Gilberto Freyre ao dizer, no último parágrafo do seu manifesto, que:

Hoje precisamos de Joões Ramos, continuadores de Joaquins Nabucos e cujas vozes se ergam não só a favor dos homens ainda cativos de homens ou dos animais ainda maltratados e explorados pelos donos ou das matas roubadas de seus bichos mais preciosos por caçadores a serviço de comerciantes gulosos de dinheiro fácil, mas a favor das árvores, das plantas, dos frutos da região, dos seus doces e dos seus quitutes, que tanto quanto as artes populares e os estilos tradicionais de casa e de móvel vêm sendo desprezados, abandonados e substituídos pelas conservas estrangeiras, por drogas suíças, remédios europeus e pelas novidades norte-americanas. Donde a necessidade deste Congresso de Regionalismo definir-se a favor de valores assim negligenciados e não apenas em prol das igrejas maltratadas e dos jacarandás e vinháticos, das pratas e ouros de família e de igreja vendidos aos estrangeiros, por brasileiros em quem a consciência e o sentido tradicional do Brasil vêm desaparecendo sob uma onda de mau cosmopolitismo e de falso modernismo. É todo o conjunto da cultura regional que precisa ser defendido e desenvolvido.

Os brados dos anos de 1910 e 1920, os efeitos negativos da Primeira Grande Guerra, a Revolução Russa de 1917, a crise europeia da década de 1920 e a crise geral do capitalismo (depois do crash da bolsa de Nova York, em outubro de 1929) ecoaram na Revolução de outubro de 1930, com a instalação do “Governo Provisório”, tendo à frente Getúlio Vargas. A tarefa inicial do programa do novo governo era a criação das bases institucionais, gestionárias e gerenciais de um Estado nacional moderno. Dos 15 anos do primeiro governo Vargas, dez foram dedicados a essa tarefa inicial. O último lustro foi todo dedicado à montagem das bases técnicas de um parque fabril caracterizador de uma sociedade industrializada – processo concluído no final do governo JK (1956-1961).

O plano Trienal de João Goulart-Celso Furtado (1963-1965) e o milagre econômico dos governos militares colocavam o Brasil na categoria de novos países industrializados e isto parecia indicar que a política pública faria secar a fonte de crítica originária da literatura e do meio acadêmico – principalmente quando o nacionalismo autoritário falava nas edições dos Planos Nacionais de Desenvolvimento-PND de “Brasil grande”, “Brasil potência”! Esses fatos possibilitaram ao Brasil mudar o seu status interno e externo, visto que o País apresentava um atraso totalmente dissociado do seu potencial, mesmo tomando como referência países da América Latina. Acerca desse fato, Celso Furtado falou o seguinte:

Nós somos de uma geração que não só se livrou dos preconceitos negativos que havia sobre o Brasil com relação ao clima e à raça, mas também teve a consciência de que o País estava numa rápida transformação e que éramos as fronteiras do progresso no mundo. Quem viveu esses anos, viveu isso, o que não deixa de ser uma experiência extraordinária. E depois tudo isso se interrompe, nos anos 1980, e hoje isso é ainda mais forte pelo contraste extraordinário que se observa com relação a períodos anteriores. (9)

Porém, a crise mais geral do capitalismo, cujo início data de 1971, nos atinge em cheio, a partir de 1980, (10) de cujos problemas ainda não soubemos nos libertar até os dias atuais – mais preocupantes porque estão numa escala de gravidade mais ampla e profunda! Essa demora em se buscar uma saída, demonstra, de um lado, a nossa incapacidade cognitiva em construir uma proposta de sociedade em que todos estejam contemplados positivamente e, de outro lado, também revela o nosso caráter lento e despreocupado – numa palavra: o nosso conservadorismo – em promover as mudanças que requerem urgência! As ideias centrais dessa proposta de mudanças já foram formuladas pelo nosso maior pensador do século XX, o paraibano Celso Furtado, na tetralogia, publicada pela Paz e Terra: A fantasia organizada (1985); A fantasia desfeita (1989); Brasil, a construção interrompida (1992); e Os ares do mundo (1992).

Depois da crise instalada, demoramos dez anos para pensar algo mais estruturado. Aqueles que acreditaram numa redemocratização transitiva apostaram todas as fichas na Constituição Cidadã de 1988, resultado do processo constituinte iniciado um ano antes. Assim, os administradores políticos brasileiros – por ingenuidade ou má fé – erraram rotundamente, posto que transformaram em lei desejos sem formular conteúdos e os meios para alcançá-los; principalmente, quando aquilo que era relevante para a conquista de uma cidadania plena ficou pendente de lei complementar – nada poderia ser mais a gosto do nosso espírito antimudancista retrógrado! Não saiu a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas; não mexemos no instituto da herança. Resultado: no campo dos direitos trabalhistas, em muitos aspectos, retrocedemos ao período pré 1930. A favelização do urbanismo brasileiro é a pior da estética do nosso processo civilizatório.

O aspecto positivo da política pública dado pela universalização da educação, saúde e segurança fica desfeito pela inaceitável queda de qualidade. No campo econômico, foi desfeita a política de longo prazo, substituída por uma atuação de varejo, pulverizada geográfica e setorialmente, tendo como principal instrumento de operação a errática política de incentivos fiscais e creditícios – nesse curso, o discurso pelo Desenvolvimento econômico e social deu lugar à pregação em favor do Emprego e Renda, que são coisas distintas, inclusive no âmbito das possibilidades. No campo do meio ambiente, a situação é tão pior quanto: mesmo depois da Conferência Rio 92 e da Rio 20, o governo brasileiro parece aceitar como “inevitável” o fim do que resta da Mata Atlântica, a progressiva devastação da Amazônia Legal, a degradação de rios e mares – o rompimento da barragem de Fundão não foi um acidente, mas o resultado de tudo o que o governo vem fazendo nas últimas quatro décadas. No campo dos direitos políticos e socais há um enorme equívoco; a própria esquerda no poder perdeu o referencial de classes sociais (trabalho versus capital, pobre versus rico) e passou a atuar com base nas especificidades: raça, gênero, sexo, etc. – inclusive no campo da repressão, quando cria delegacias especializadas nisso ou naquilo; alguns mais “prestativos” chegam a ter nisso uma compreensão pós-moderna do mundo!

Certamente não somos pessimistas, mas isso não nos credencia ocultar o fato de que quase tudo o que passamos a fazer depois de crise – como já dito, crise essa que tem início mais declarado a partir de 1980 – tem nos conduzido a um progressivo esgarçamento econômico, ambiental, social, político e, sobretudo, moral. A vocação para o que chamamos de consenso positivo é o lado farsante do nosso conservadorismo; é marcante em todos os diagnósticos que fazemos a respeito do Brasil e é muito visível exatamente nas respostas de pessoas quando instadas a dizer as suas impressões a respeito da sociedade brasileira, principalmente no período pós-regime militar: – veja bem, temos muito a fazer ainda, mas também não se pode negar que houve avanços! Quando se questiona (avanços para quem?), normalmente apresentam como argumento de defesa algumas estatísticas fajutas de inclusão social.


Neste Ensaio III, queremos chamar a atenção de que, mesmo o conservadorismo sendo um traço cultural muito forte em nós e que isso impõe um ritmo muito lento nas mudanças que requerem urgência, o aprofundamento da crise exige que se retome, o mais rapidamente possível, o processo da construção interrompida – da qual nos falou Celso Furtado. Porém, a retomada não pode ser nos termos de 40 ou 50 anos atrás: instalação de grandes projetos industriais; a modernização do campo alicerçada em grandes empreendimentos agroindustriais; uma matriz energética centralizada em fontes não renováveis (petróleo); uma integração nacional com base no transporte rodoviário; inovação com forte importação de tecnologia; etc. Conseguimos muito dessas coisas, porém a um custo quase incalculável! Agora, devemos conceber uma proposta que seja mais voltada para a descentralização da produção e do consumo, tendo como finalidade concluir a matriz produtiva e fechar o ciclo da inclusão social plenamente.

Desse modo, para que essa nova proposta cumpra a finalidade assinalada, o conteúdo do projeto não pode ter como expectativa máxima a expansão do produto, muito menos a taxas historicamente observadas. Com o enfraquecimento da concertação mundial centrada mais nos dois blocos hegemônicos (União Soviética e Estados Unidos) do que nos organismos multilaterais capitaneados pela ONU e no amadurecimento das economias desenvolvidas, a simetria no crescimento dos PIBs a taxas acima de 5% a.a. foi desfeita; hoje, o que se observa é uma assimetria com baixas taxas de crescimento – uma média em torno de 2% a.a.

Outro aspecto importante da estrutura da economia mundial e nacional, e que parece passar ao largo dos diagnósticos dos nossos analistas, é o fato dessa baixa taxa de crescimento do PIB já perdurar por quase meio século. Essa perspectiva da inclusão pela expansão do produto parece ficar mais agravada ainda quando as pesquisas empíricas mostram que o avanço das forças produtivas na “velocidade da luz” vai deixando, cada vez mais, distante a perspectiva de pleno emprego – não podemos mais ignorar a fatalidade do desemprego estrutural; dessa forma, insistir no discurso a favor de uma política de emprego e renda parece ser uma estultice. Isso denota que se devem buscar outros caminhos que não somente o crescimento do produto para se chegar ao bem estar social. (11)


Na trilha desses outros caminhos, pode-se enxergar e compreender melhor que o protagonismo do Estado, no momento presente, é fundamental e decisivo; porém, não pode ser da mesma natureza e ter a mesma finalidade que tivera na crise econômica (1929/1933) e na política (1939/1945). Lá, o Estado, ao implantar as políticas públicas, objetivava, em primeiro plano, criar as condições para a recuperação e expansão econômica; hoje, considerando que os nossos patamares de riqueza e renda acumuladas estão bem elevados e que os serviços públicos universais estão implantados e ofertados com certo grau de regularidade (embora a qualidade deixe a desejar), o protagonismo do Estado deve ser, sobretudo, no aspecto distributivo. (12)


Para concluir, resumimos a nossa proposta aqui apresentada: a) apesar do nosso caráter antimudancista fazer parte do acervo cultural, que o conservadorismo mesquinho e míope de nossas elites tenha algum momento de lucidez para perceber que o grau de resignação dos pobres e miseráveis deste País certamente tem um limite e podemos está muito próximo dele; b) a defesa da distribuição como central para alavancar um processo de desenvolvimento com bem estar, com o protagonismo singular da política pública estatal, não implica desconsiderar a importância do crescimento do PIB, principalmente a política para a indústria de transformação mais desconcentrada e regionalizada; c) considerando que as relações econômicas são administradas, defendemos que exercitemos um aprendizado para fazer a equalização dos parâmetros econômicos (inflação, contas públicas, etc.) em condições de expansão e não de recessão. (O novo Ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, sinaliza com essa possibilidade – oxalá!).

Esta proposição nos parece tão óbvia que a sua não implantação parece revelar o traço mais oculto e tenebroso do nosso caráter antimudança por temer que isso nos aproxime mais rapidamente de uma sociedade estacionária do futuro – o que implica antever um estágio de maior abundância e, portanto, marcado pelo baixo crescimento – por uma acumulação simples. Ou seja, chegaremos a um estágio em que a questão econômica perde relevância! Para aqueles que duvidam desse raciocínio, esclarecemos que a elite é o único segmento culto, que conhece o pensamento social, mas só absorve o que seja útil aos seus interesses – inclusive sabe que Marx, Schumpeter e Keynes, por caminhos teóricos e ideológicos diferentes, chegaram à mesma conclusão: a inevitabilidade de uma sociedade estacionária no futuro. Enquanto isso, parece só nos restar seguir o conselho de Keynes: fazer moderados preparativos para a contemplação das artes da vida!


1. Reginaldo Souza Santos é doutor em Economia (UNICAMP), professor titular da Escola de Administração da UFBA e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Administração Política. 
2. Fábio Guedes Gomes é doutor em Administração (UFBA), professor de Economia da UFAL e Pesquisador Associado do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas e Desenvolvimento.

3. Thiago Chagas é doutor em Ciências Sociais (UFBA) e professor do Instituto Federal da Bahia-IFBA, campus Feira de Santana.


4. José Murilo Philigret é professor da Faculdade de Economia da UFBA, doutorando da Escola de Administração-UFBA.

5. Elizabeth Matos Ribeiro é doutora em Ciência Política e professora Adjunta da Escola de Administração da UFBA.
6. Mônica Matos Ribeiro é professora da UNEB e doutoranda em Administração na UFBA.
7. Esta que fora tão bem retratada como categoria de análise para o entendimento do capitalismo americano por Thorstein Veblen, em seu livro clássico A Teoria da Classe Ociosa (original em inglês: The Theory of the Leisure Class), publicado em 1899.
8. htpps://pt.wikipedia.org/wiki/memórias_póstumas_de-brás_cubas
9. Dossiê Celso Furtado. Cadernos do Desenvolvimento vol.6 (8), Rio de Janeiro, maio de 2011. (Entrevista a Eduardo Kugelmas).
10. Atribui-se talvez peso excessivo à dívida externa na explicação da nossa crise; aqueles problemas foram até certo ponto equacionados, mas nossa crise permanece – para uma melhor análise sobre esse ponto ver Outro Modo de Interpretar o Brasil (II). Carta Maior.
11. Querer chegar à melhor distribuição pela via do emprego foi fortemente criticado por Keynes em seu panfleto, escrito em 1930, com o título: As Possibilidades Econômicas de Nossos Netos. Também é fundamental para discutir essa questão o texto mais atualizado e polêmico de PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

12. Para um maior detalhamento compreensivo ver SANTOS, Reginaldo Souza e outros, A Crise, o Estado e os Equívocos da Administração Política do Capitalismo Contemporâneo (no prelo).

Fonte: cartamaior

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