O antropólogo, cientista político, pesquisador e escritor Luiz Eduardo Soares é um dos principais especialistas em Segurança Pública do Brasil. Ele é autor, co-autor e organizador de mais de 20 livros sobre a área, entre eles Elite da Tropa, obra que inspirou o longa-metragem “Tropa de Elite”, do cineasta José Padilha, que escancara a violência brutal e letal da polícia, bem como as entranhas da corrupção do sistema público de Segurança no país.
Recentemente, Luiz Eduardo Soares participou em 27 de maio como convidado do I Congresso Nacional dos Policiais Antifascismo, realizado em Recife (PE), ocasião em que lançou seu mais novo livro: “Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos”. Na obra, ele defende várias teses, entre elas um novo modelo de organização das polícias, especialmente a Ostensiva (militar).
Para ele, caso o pacote penal enviado pelo ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional seja aprovado, o país vai legitimar a pena de morte. Isso porque uma das propostas é ampliar o excludente de ilicitude que permite, atualmente, crimes cometidos em legítimas defesa. Porém, no projeto apresentado por Moro, o excludente de ilicitude se estende para operadores de Segurança Pública que matem alguém “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado” quando conseguir provar que esteve em situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Subjetivas, as condições apontadas na proposta devem legalizar a execução extrajudicial, especialmente nas periferias, territórios mais vulneráveis às ações de violência policial letal.
A agência Saiba Mais conversou com o antropólogo Luz Eduardo Soares em Recife (PE). Nesta entrevista, ele fala sobre Segurança Pública, desmilitarização das polícias, o projeto penal do governo Bolsonaro e utopias:
Saiba Mais – A sociedade brasileira elegeu em 2018 um presidente armamentista e com discurso fascista. No seu mais recente livro “Desmilitarização: Segurança Pública e Direitos Humanos”, o senhor defende a desmilitarização das polícias. Como é puxar esse debate num momento como esse ? Não parece utópico demais ?
Luiz Eduardo Soares – Talvez ele seja até mais necessário justamente pelas dificuldades. Mais necessário do que nunca, desde a redemocratização, porque nós estamos na iminência de rasgar a Constituição, aliás, o que temos feito regularmente já. Então a nossa democracia, o que resta dela, está muito fragilizada. Evidente que (esse debate) acaba se situando num momento histórico muito difícil, obscurantista, regressivo… e na área de segurança pública mais ainda né ? Portanto levantar bandeiras progressivas, democráticas, o que é imprescindível nessa área, até para que o Brasil vire uma democracia que mereça esse nome, parece um contrassenso, na contramão de fato das marés, mas a gente tem que ter caminhos para o futuro.
A luta em defesa dos Direitos Humanos nunca foi a favor da maré…
É, nunca foi, mas a gente já teve momentos de respeito democrático mínimo pelo menos, e promessa de respeito, ainda que nas áreas periféricas, nos territórios vulneráveis, o genocídio de jovens negros, de jovens pobres, tenha sido uma constante, independente das variações de regime político. Mas de toda maneira havia sempre uma referência constitucional, para nós defensores Direitos Humanos que lutamos e resistimos contra a barbárie e contra a brutalidade policial letal. Para nós, eram instrumentos muito importantes, legais de resistência, sempre faz muita diferença.
Qual a diferença para o contexto atual ?
Agora a gente está na iminência de legitimação e legalização da execução extrajudicial, da pena de morte sem julgamento com essa história do excludente de ilicitude. Então se já tínhamos esse problema imenso da violência policial, agora vai se intensificar e tende a se legitimar. Então realmente o horizonte é muito preocupante. Mas temos que ter caminhos alternativos porque o Brasil há de se recuperar, a gente deve esperar, contribuir e lutar para que isso aconteça e em isso acontecendo temos que ter caminhos e ir construindo possibilidades, as opções. Para não ficar só na negativa a gente já tem que apontar os caminhos aonde investir as energias. Então acho que sempre é o momento.
“O horizonte é muito preocupante”
No posfácio do livro “Desmilitarizar”, o senhor escreve que quando eleitores escolhem, como seus representes, candidatos que se apresentam pela força, na verdade estão elegendo a anarquia. Por que a esquerda não consegue fazer com que a sociedade perceba essa relação ?
Eu mesmo me pergunto isso e com esse livro procuro responder essa pergunta. Sempre foi muito difícil, não só no Brasil, mas particularmente no Brasil. Há muitas razões: preconceitos, concepções equivocadas, negligência do debate ou a apropriação oportunista e populista do discurso demagógico punitivista para vencer as eleições, isso associado à ignorância do debate específico. Mas ao invés de ir para uma clave negativa eu prefiro ir por uma clave positiva. Por mais que a gente sonhe com uma sociedade futura sem classe, de plena fraternidade, isso está fora do nosso horizonte concreto histórico. É uma utopia, deve ser mantida, mas certamente não será para minha geração, sabe-se lá, se vier, para qual geração será. O fato é que teremos Estado até onde a vista alcança. Se vamos ter classe também temos Estado. E em havendo Estado há polícia e justiça criminal, há leis. Então as polícias serão companheiras da longa travessia, assim como o Estado. Mas qual o propósito teremos para o Estado ? Aí há muito trabalho já desenvolvido. Mas há uma parte do Estado, que são as polícias, para a qual temos pouquíssimas propostas, pouco entendimento, como se isso não nos dissesse respeito, fosse sempre matéria da direita e nos coubesse apenas lavar as mãos. O resultado é que estamos sempre entregando à direita o protagonismo e a liderança dessa área. E a nós tem cabido só o papel da crítica, que é muito importante, mas é insuficiente porque nós temos que disputar essa área com propostas nossas, que sejam compatíveis com nossos princípios, nossos valores, porque nós estamos convencidos de que será mais democrático e isso caminhará no sentido do antirracismo e no sentido da redução das desigualdades. Então se as esquerdas compreenderem que gostando ou não das polícias estaremos com as polícias ao longo dos períodos históricos que estão diante de nós, temos que ter uma proposta política para os setores dessas instituições. Isso para mim é um argumento irrefutável, a não ser que você diga que estamos na iminência de uma revolução social, que somos vizinhos da utopia e que não vamos perder tempo com isso (risos). E não vejo ninguém de fato dizendo isso, sobretudo agora. Então temos que ter essa humildade histórica e reconhecer que é preciso que haja essa política. E veja, mesmo no socialismo real as polícias são experiências trágicas. A ausência de uma reflexão a respeito de direitos humanos, democracia e socialismo também fez muito mal historicamente.
“Se as esquerdas compreenderem que gostando ou não das polícias estaremos com as polícias ao longo dos períodos históricos que estão diante de nós, temos que ter uma proposta política para os setores dessas instituições”.
O projeto enviado pelo governo Bolsonaro ao Congresso e batizado de “anticrime” pelo ministro da Justiça Sérgio Moro pode ser considerado anticrime mesmo ? Qual sua avaliação sobre a proposta ?
É uma verdadeira insanidade, vai na contramão do que seria necessário no Brasil. Primeiro que autoriza a execução extrajudicial instaurando na prática a pena de morte sem julgamento, o que incrementa um dos nossos grandes problemas, que é a violência policial letal. Segundo porque aposta no encarceramento. Nós já temos a terceira população carcerária do mundo e a que mais cresce desde 2001. Esse projeto amplia penas e cria condições para encarceramento que significa fortalecer, na verdade, as facções criminosas que dominam o sistema carcerário, além de destruir vida de jovens que não necessariamente são violentos e podiam ser aproveitados para a reconstrução de suas vidas. Haveria muitos exemplos das propostas, mas basicamente esses são os pontos principais: aposta no encarceramento em massa e na violência policial letal.
“Agora a gente está na iminência de legitimação e legalização da execução extrajudicial, da pena de morte sem julgamento com essa história do excludente de ilicitude”
O governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que também faz uso da violência para supostamente coibir a violência, é fruto apenas do “bolsonarismo” ?
Certamente o Witzel é fruto do bolsonarismo, foi eleito no vácuo de lideranças alternativas que tivessem grande popularidade e condições de se implantar puxado pelo “bolsonarismo”, principalmente nas últimas duas semanas (da eleição). Mas deveríamos pensar que ele é fruto das condições que também geraram o “bolsonarismo”, ou seja, tanto o Witzel como o Bolsonaro são expressões de algo, de algum fenômeno que nós ainda precisamos compreender.
Embora o Witzel seja o ramo e o Bolsonaro seja o tronco, ambos vêm de raízes que ainda precisamos compreender.
“O Witzel e o Bolsonaro vêm de raízes que ainda precisamos compreender”
O senhor disse recentemente que o grande recado dado pela sociedade, sobretudo dos brasileiros mais pobres, nas últimas eleições, foi que a Segurança Pública também interessa a ela, um tema que a esquerda sempre negligenciou. O senhor chegou a citar uma passagem com o ex-presidente Lula nesse sentido…
Isso foi em 2001, no Jardim Ângela, um bairro de São Paulo, na época era o bairro mais violento da América Latina e que segundo a ONU era o mais violento do mundo. A violência policial era extrema e estávamos elaborando o plano nacional de Segurança Pública, fazíamos algumas audiências públicas e fizemos essa no Jardim Ângela com o apoio do padre Jaime, grande liderança dos direitos humanos. Fomos ouvir a comunidade e os representantes relataram durante muito tempo os detalhes da brutalidade policial, era muito comovente. E o Lula comentou comigo: “poxa, Luiz Eduardo, há tantos problemas importantes no Brasil como saúde, educação, e esse pessoal só está falando de polícia”. E eu compreendo o espírito que ele disse, bem intencionado, claro, mas eu falei para ele: “Lula, você é o maior líder da América Latina e nunca falou em polícia ou raramente fala. Mas para esse pessoal, polícia é questão de vida ou morte, não é um detalhe, não é uma questão secundária. Você tem que estar vivo para lutar por emprego, por saúde. É um tema muito importante e é preciso que se fale mais”.
Dentre as alternativas na área de Segurança Pública divulgadas para conter a violência, uma das mais famosas foi o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro. Porquê as UPPs fracassaram ?
As UPPs são uma longa história. Quando houve a apresentação do projeto em 2008, (Sérgio) Cabral estava em declínio político e esse foi um projeto nitidamente político com o qual ele se reelegeu no 1º turno depois e que tinha esse papel de valorização do governo diante das camadas médias e dos turistas. Não se tratava de uma política pública nem tinha dinheiro para isso. E as favelas escolhidas não eram as que mais apresentavam problemas de Segurança Pública e que mais necessitariam de iniciativas nessa área, mas eram aquelas que se situavam junto à zona sul, área nobre ou que seguiam o circuito dos grandes eventos. E além disso ainda que houvesse boas ideias como acabar com as incursões policias de cunho bélico que matam inocentes, suspeitos, nas quais morrem policiais sem que haja avanço. Então isso era uma ótima razão para que se fizesse alguma coisa, acabar com essas intervenções, tratar a favela como bairro, que merece atenção em segurança pública como qualquer outra parte da cidade, atenção de um serviço 24 horas, essa é a ideia original, e com uma abordagem respeitosa, digna da população, um tipo de abordagem acompanhando um modelo do policiamento comunitário.
“As UPPs foram um nítido projeto político”
O senhor foi um crítico desse programa desde o início…
O que eu dizia já na época da implantação é que eu não acreditava que se pudesse mudar o método de abordagem com aquela mesma polícia. Aí se dizia que iriam contratar policiais novos para isso. Mas com quanto tempo de formação ? Misturados com os policiais mais tradicionais ? Com que táticas e estratégias ? E as políticas sociais que acabaram não aparecendo, viriam junto ? Então acho que era um projeto fadado a não dar certo e acabou se convertendo na mesmice de sempre: corrupção, achaques e violência.
Quando se fala em “desmilitarizar” as polícias no Brasil muita gente ainda pensa que a ideia é desarmar os operadores de Segurança Pública. Seu livro defende a desmilitarização sob uma perspectiva dos Direitos Humanos. Na prática, o que significa a desmilitarização das polícias ?
A policia ostensiva preventiva uniformizada é militar no Brasil de acordo com artigo 144 da Constituição. E ela é considera a força reserva do Exército e deve se organizar à imagem e semelhança do Exército. A primeira pergunta que nós fazemos é muito simples: “qual a melhor forma de organização?”. Uma pergunta assim abstrata não faz sentido, depende da finalidade a que se destina a instituição. O formato ideal para uma universidade não é o mesmo de um açougue. Então porque a polícia militar haveria de copiar o modelo do Exército ? Só haveria uma resposta possível: as finalidades são as mesmas. Mas está errado porque as finalidades da polícia e do Exército não são as mesmas. A finalidade do Exército é defender a soberania nacional, o território nacional, inclusive por meios bélicos se necessário, enquanto a polícia deve garantir direitos, proteger a cidadania, etc. Então não se justifica que a estrutura de organização seja a mesma. O fato de ser militar trás uma série de prejuízos. Primeiro que não permite que os policiais se organizem, formulem suas demandas, participem do processo decisório, isso é excludente politicamente e acaba sendo instrumento de exploração da sua força trabalho. Segundo que a estrutura é muito rígida, hierarquizada e ela impede que haja aplicação de modelo de policiamento que exige atribuição de autonomia na ponta com os policiais que deveriam ter o papel decisório e isso é muito diferente do que a estrutura militar permite. Seria necessário uma estrutura mais flexível, capaz de adaptações plásticas, o que faria do policial um gestor de Segurança, e não um soldado numa guerra. E também há a ideologia da guerra, típica da estrutura militar que define o suspeito como inimigo, com consequências que estamos vendo na brutalidade policial letal que é recorde no Brasil.
Fonte: saibamais
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