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Quando o juiz desiste da lei e conclama as massas




Buscar legitimidade junto às massas é antiga estratégia de tiranos. Mas na multidão desaparecem as individualidades e a barbárie volta facilmente a dominar

Imagem: Ecce Homo (“Eis o homem”, 1871), obra do pintor italiano Antonio Ciseri que retrata a entrega de Jesus pelo governador e juiz Pôncio Pilattos para ser julgado pela multidão. Como se sabe, a multidão o condenou, apesar de sua inocência

Terry Pratchett, escritor inglês dotado de um humor cáustico e irônico, dizia que a inteligência de uma criatura conhecida como multidão é igual à raiz quadrada do número de pessoas dentro dela.

No obra Psicologia das multidões, traduzida para diversas línguas, publicada em 1895, Gustave Le Bon, médico e sociólogo, apresenta um profundo estudo sobre as multidões.

Segundo Le Bon, em determinadas circunstâncias, um agrupamento de indivíduos adquire caracteres novos, bem diversos dos caracteres de cada um dos indivíduos que o compõem. A personalidade consciente desvanece-se. Forma-se uma alma coletiva voltada para uma direção única. Na alma coletiva desaparecem as aptidões intelectuais dos homens e, por consequência, as suas individualidades. O homogêneo absorve o heterogêneo e as qualidades inconscientes passam a dominar.

Numa multidão, todos os sentimentos, todos os atos são contagiosos ao ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Só pelo fato de pertencer a uma multidão, o homem desce vários graus na escala da civilização. Isolado seria talvez um indivíduo culto; em multidão é um ser instintivo, por consequência, um bárbaro. (LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. França: Delraux, 1980).

Primitivamente os crimes eram reprimidos pelas mãos do ofendido, de seus familiares ou do clã a que ele pertencia. A existência, a magnitude e a forma desta reação dependiam exclusivamente da vontade dos lesados. Delitos leves eram reprimidos severa e desproporcionalmente (MARICONDE, Alfredo Vélez. Estúdios de derecho procesal penal. Córdoba: Imprenta de la Universidad, 1956, tomo II, p. 7). Porém, organizando-se a sociedade, os chefes se aperceberam de um grande inconveniente da vingança privada: seus excessos causavam a morte de muitos, enfraquecendo o grupo.

Herbert Spencer observa que a administração grosseira da justiça por meio de lutas privadas transformou-se em administração pública da justiça, não em razão da solicitude que o soberano sentisse pela equidade das relações sociais, mas, muito antes, para prevenir o enfraquecimento social resultante das dissensões intestinas (A Justiça. Lisboa: Artigas Livrarias, s/d). O desacerto de dois indivíduos crescia para se transformar em guerra entre famílias, que se prolongava indefinidamente, movida pelo sentimento vingativo.

Firma-se a convicção de que a punição dos crimes é interesse geral da coletividade, e assim a justiça transforma-se em monopólio estatal. O Estado proíbe aos particulares a execução da justiça e, por consequência, assume o dever de fazê-la e distribuí-la.

O povo e as multidões são afastados da Justiça através da lei. Em substituição à justiça, se oferece às multidões atividades semelhantes, inclusive para mantê-las sob controle. São as leis regularmente instituídas que representam a sociedade, não a instabilidade de tribos, clãs, interesses ou ideologias do momento.

Na Roma imperial havia a política do pão e circo. Era distribuído trigo e diversão para a plebe. No Coliseu, o imperador, quando tinha de decidir entre a vida e a morte de um gladiador, permitia que a multidão participasse. Com o braço esticado e polegar paralelo ao solo, ele aguardava os brados das galerias. Se o pedido fosse de morte, o polegar se voltava contra seu próprio peito (e não para baixo, como inventado pelos roteiristas do cinema) como sinal de que a espada podia atravessar o corpo do gladiador rendido.

Buscar legitimidade diretamente junto das multidões é antiga estratégia de tiranos, inclusive sugerida por Maquiavel em O Príncipe. O Coliseu era uma maneira de manter as multidões sob o controle do Estado. O povo participava da justiça, mas sob absoluto controle, e o imperador ainda tirava proveito em favor de sua legitimidade.

As redes da internet deram origem a multidões virtuais. Essas tribos escavam buracos e cavernas onde adentram de meia dúzia a dúzias de indivíduos, todos com posições ideológicas semelhantes. Quando não são, vão se assemelhando, se compactando. É o contágio referido por Le Bon.



Como não há troca de ideias, apenas a reiteração das mesmas, a estupidificação é progressiva. Havendo ódio, ele se multiplica exponencialmente. É retroalimentação do ódio e da idiotice. Pessoas de inteligência de nível superior se equiparam em ignorância com indivíduos primários, quando se trata de crer em concepções completamente absurdas e desprovidas de qualquer comprovação. Há algo de inconsciente nesse vínculo grupal e a multidão lhes dá uma sensação de força e superioridade. É a farra da mentira (fake news).

O que era para ser um ambiente propício para uma saudável contraposição de ideias se transforma em um ideário único, repetitivo, monótono e odioso. Não há oposição nessas cavernas. Desmentido é banimento. É uma multidão. Comporta-se como tal. Pensa grosseiramente como tal. É com a colaboração desses selvagens, das vozes guturais que ecoam dessas cavernas escuras, que são riscadas as leis, que são derrubados os tribunais e que se erguem os opressores.



De uns tempos para cá, surgiu um grande número de frequentadores desses ambientes virtuais posicionando-se firmemente em relação a decisões judiciais, muito embora, a sua imensa maioria não saiba distinguir Constituição de lei federal. Não faz a menor ideia de que exista um STJ, além do STF. Desconhecem a finalidade do foro privilegiado. Mesmo assim, com pleno desconhecimento, possuem opinião firme sobre todos esses assuntos e, ainda, estão dispostos a fechar o STF, o mal de todos os males. Afrontam publicamente Ministros que decidem contra a exegese ideológica que fazem das leis. Ou seja, a multidão quer impor à força a sua interpretação das leis para Ministros da mais alta Corte da nação. E sob ameaça de fechamento. Esse é o ponto a chegamos! E a pensar que há quem pense que se deva julgar dando ouvidos a esse barulho!

Cumpre indagar: qual deve ser a relação do operador do direito, juiz, promotor e advogado com o público? A administração da justiça foi proibida aos particulares dado a total incompetência destes últimos para conduzi-la. A civilização criou a lei para dar solução aos conflitos. Se o operador de direito conclama à turba para concorrer na instituição de justiça, ele está não apenas violando a ordem jurídica, como também colocando em risco a legalidade.

O artigo 236, inciso X da LC n. 75/1993, diz que o membro do Ministério Público da União deve guardar decoro pessoal. Decoro é comedimento, discrição, reserva, resguardo. Não é publicidade, vulgarização, difusão, propagação. O artigo 43, inciso I da Lei n. 8.625/1993, por sua vez, estatui que constitui dever do membro do Ministério Público manter ilibada conduta pública e particular.

O inciso XIII do artigo 34 da Lei n. 8.906/1994 estabelece que constitui infração disciplinar se o advogado mandar publicar na imprensa, desnecessária e habitualmente, alegações forenses ou relativas a causas pendentes.

A Loman no artigo 36, inciso III, veda ao juiz manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento.



Como se observa, no caso de manifestações sobre causas em andamento, há uma violação de normas específicas que regulam as funções dos operadores do direito. Mas não é só isso. Há norma que se pode considerar geral na ordem jurídica, exigindo que seja mantido o comedimento. Diz o artigo 427 do CPP que, se houver dúvida sobre a imparcialidade do júri, o Tribunal poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região. A dúvida quanto à imparcialidade do júri se verifica quando os jurados estejam sob influência de pressão popular, quando há comoção geral na sociedade local provocada por opiniões prévias. Em outras palavras, o legislador processual penal desaprova a publicidade. Ele não quer ver multidões julgando juízes.

A coletividade em que os juízes são julgados e submetidos à execração pública, se não decidirem segundo a vontade popular, não é uma sociedade organizada, mas uma multidão de selvagens de quando não havia leis e Estado.

Quando se esvai a legalidade, é a vez da tirania. O operador de direito – promotor, advogado e juiz – passa para o lado dos reprimidos, pois que o objeto do seu trabalho, a lei, se evapora. As três pessoas que o tirano quer ver o mais longe possível (ou preso) são justamente o promotor, porque é defensor da ordem jurídica, o juiz, pois que julga de acordo com a lei, e o advogado, quem reclama o cumprimento da lei.

Observa-se que a lei recomenda prudência aos operadores de direito. Cautela com a multidão. A lei foi criada para substituir o julgamento da turba. O clamor tende a ser sempre punitivo, pois ele é grito inconsciente da espécie ameaçada pelo ato antissocial individual.

A multidão não é racional. Cautela! Como dito por Dionísio de Halicarnasso: a multidão é a mãe de todos os tiranos.

Flavio Meirelles Medeiros é advogado

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