Se nada mudar, no dia 10 de abril de 2019, o Supremo Tribunal Federal voltará a decidir sobre a obrigatoriedade da prisão de pessoas condenadas após julgamento em segunda instância. A se acreditar nas manchetes, depois da decisão liminar do ministro Marco Aurélio no fim de 2018, mais de 150 mil pessoas aguardam esse julgamento na esperança de serem soltas.
Vejam: essas mais de 150 mil pessoas responderam livres perante o juiz enquanto corria o processo criminal (em primeira instância). Continuaram livres no aguardo do recurso de apelação para julgamento pelos desembargadores (segunda instância). E querem continuar livres enquanto aguardam o julgamento definitivo de seus recursos ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal.
Essas pessoas não foram presas preventivamente durante o processo. Ou seja, não há perigo quanto à garantia da ordem pública e econômica; não há conveniência da instrução criminal, nem necessidade de prender para assegurar a aplicação da lei penal (requisitos da prisão preventiva conforme Art. 312 do Código de Processo Penal).
Enfim, são pessoas que estão presas pelo fato de terem sido consideradas culpadas por um Tribunal Regional de segunda instância (Estadual ou Federal). No entanto, ainda aguardam decisão final que virá do STJ (onde se discute a condenação à vista do Código Penal e Processo Penal) e do STF (onde se discute a condenação à vista da Constituição Federal).
Por um voto
Como se sabe, o tema já esteve sob julgamento do STF em 2016. Entretanto, nesse julgamento, os Ministros apenas julgaram o pedido liminar de Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC 43 e 44) que, em 10 de abril de 2019, serão julgadas no mérito. As ações foram intentadas pelo Partido Nacional Ecológico (PEN) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Naquele julgamento de 2016, a liminar foi indeferida por seis votos contra cinco. Ou seja, para os cinco ministros vencidos, o réu condenado em segunda instância – e não preso preventivamente – poderia aguardar em liberdade o julgamento de seu recurso ao STJ e ao STF. A maioria dos Ministros, contudo, indeferiu a liminar da ação constitucional. Com isso, desde então, os condenados tiveram que aguardar presos o julgamento de seus recursos ao STJ e STF.
No próximo dia 10 de abril, será julgado o mérito daquelas ações constitucionais. Estarão em debate, definitivamente, artigos da Constituição e do Código de Processo Penal. Eis os texto da Constituição: “Art. 5, inciso LVII – Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Interessa também o Art. 283 do Código de Processo Penal: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
A colocação em pauta do julgamento do mérito das ações constitucionais se fez urgente por dois motivos. Primeiro, os ministros que votaram vencidos no julgamento do pedido liminar em 2016, não se sentiram vinculados àquela decisão. Segundo, o ministro Gilmar Mendes, que votara com a maioria, mudou de posição. Assim, quem teve a sorte de ter seu pedido de habeas corpus julgado por um dos ministros que em 2016 votara com a minoria, mais o ministro Gilmar Mendes, conseguiu liminar para responder em liberdade enquanto corre seu recurso no STJ e STF.
Por sua vez, as pessoas que tiveram o azar de ter seu pedido de habeas corpus julgado por um dos ministros que votaram com a maioria, em 2016, mais a ministra Rosa Weber, não conseguiram liminar e respondem presas enquanto corre seu recurso que busca modificar a decisão condenatória de segunda instância.
Com vistas ao que acontecerá no dia 10 de abril, vale a pena algumas distinções.
Habeas corpus e ações constitucionais
Para entender a diferença entre habeas corpus e ações constitucionais, façamos uma analogia entre o processo judicial e uma casa.
Pedir alguma coisa ao Poder Judiciário é como entrar em uma casa. Dependendo da porta que se abrir, chega-se a uma peça da casa, em que pode estar o que se quer alcançar. (por exemplo, se abrir só a porta da ação de divórcio não se alcançará uma indenização por danos morais contra ex-cônjuge).
Quando é aberta a porta de uma “ação constitucional”, chegar-se-á a uma sala em que os julgadores reunidos discutirão a interpretação da Constituição Federal. E, no fim do julgamento, esta interpretação valerá para todos os casos, para todas as pessoas. E todos os juízes (pelo menos em tese) estarão obrigados a decidir conforme a interpretação dada pelo STF. Nesse caso, os ministros não julgam o caso específico de uma pessoa. Eles discutem a interpretação do texto da Constituição.
A ação constitucional não é uma ação “subjetiva” (porque não está em jogo o interesse de um sujeito, de uma pessoa). É uma ação “objetiva”, pois está em debate a interpretação da Constituição – objetivamente – para todas as pessoas.
Diferente é o “habeas corpus”.
O “habeas corpus” dá acesso a uma sala de outra natureza, em que se vai aplicar a orientação do STF sobre o caso. Aberta a porta de um pedido de habeas corpus, os julgadores discutirão o caso particular que motiva a prisão. O julgamento do habeas corpus não muda a interpretação da Constituição que o STF já fez, em ação constitucional.
Com vista ao julgamento do dia 10 de abril, é importante ter em conta que não estará em julgamento um habeas corpus. Estará em julgamento o mérito das ações constitucionais ADC 43 e 44.
Não podemos perder o rumo: depois da decisão liminar de 2016, nunca esteve em julgamento o mérito desta ação constitucional. Só estiveram em julgamento habeas corpus. Ou seja, no dia 10 de abril, não estará em debate o caso de uma pessoa que está presa. Estará em debate a interpretação da Constituição Federal, que repercutirá sobre todos os casos de pessoas que respondem e responderão processo criminal, daqui para frente.
Vale a pena relembrar o que aconteceu no julgamento do habeas corpus do Lula.
O habeas corpus do Lula
O pedido de habeas corpus de Lula, por decisão do relator, foi levado a julgamento pelo plenário do STF. Em seu pedido de habeas corpus, o pedido de Lula era o mesmo de outros “habeas corpus” sobre o tema: aguardar em liberdade o julgamento do STF e STJ de seu recurso contra uma decisão de segunda instância (Tribunal Federal da 4a Região).
Havia expectativa quanto ao voto da ministra Rosa Weber, pois no julgamento da liminar na ação constitucional em 2016, diferente de Gilmar Mendes, a ministra compôs a minoria vencida. Contudo, nos habeas corpus posteriores sob seu julgamento – diferente das decisões de Gilmar Mendes – a ministra Rosa Weber vinha votando pela manutenção da prisão depois da condenação em segunda instância.
No julgamento do habeas corpus de Lula, o voto da ministra Weber não foi diferente. E muitos juristas criticaram o fato dela utilizar o princípio da colegialidade na justificativa de seu voto. A ministra, como que se sentiu “presa” e se manteve no estreito caminho da porta aberta pelo habeas corpus. E, com a autonomia de julgamento e de convencimento garantida aos julgadores, negou a ordem. Para tanto, Weber invocou o resultado do julgamento da liminar em 2016 e o princípio da colegialidade.
É certo que Weber, no julgamento do habeas corpus do Lula, em 2018, poderia ter decidido pela concessão da liberdade. Foram nesse sentido os votos dos ministros Marco Aurélio, Celso de Melo, Lewandowski e Dias Toffolli, que com ela compuseram minoria em 2016, e não se sentiram vinculado à decisão da maioria de 2016. Também pela concessão da liberdade de Lula votou Gilmar Mendes, que mudou de orientação depois da decisão de 2016.
A Ministra Rosa sabe que o julgamento de 10 de abril próximo será diferente. Foi aberta porta de uma ação constitucional. Agora a ministra Weber estará “livre” para expressar o seu entendimento sobre a melhor interpretação da Constituição. Por isso, pode-se projetar expectativas sobre o voto da ministra a partir do fundamento invocado por ela para negar o habeas corpus do Lula.
Princípio da Colegialidade
Na expressão “princípio da colegialidade” cabem, pelo menos, duas significações que podem se complementar. Primeiro, a colegialidade está ligada ao princípio do “juiz natural”. Ou seja, quem vai julgar: um juiz único ou um colegiado?
Como se sabe, de regra, os casos na primeira instância são julgados por um juízo único. A partir da segunda instância, o julgamento se faz com três ou mais julgadores. Essa primeira acepção do princípio da colegialidade vai projetar a necessidade de uma decisão se dar, obrigatoriamente (não por um só juiz, mas) por um colégio de juízes. Foi neste rumo a crítica feita pelo Procurador Dall’Agnol à decisão monocrática do ministro Marco Aurélio no fim de 2018: “A decisão isolada do ministro subverte o princípio da precedência e da colegialidade”, afirmou.
Em uma segunda acepção, o princípio da colegialidade se confunde com segurança jurídica: aquilo que o colegiado decidiu (mesmo que seja a maioria do Pleno do STF, por exemplo) obriga outros julgadores. A ministra Rosa Weber se sentiu vinculada ao julgamento de 2016. Mesmo que tenha sido somente uma decisão liminar. Mesmo que, em 2016, ela tenha votado com a minoria, em favor da liberdade após condenação em segunda instância.
Por isso, a ministra Weber alegou que o princípio da colegialidade é imprescindível para o sistema de Justiça, pois a individualidade dentro do Tribunal tem um momento delimitado, que cede espaço para a razão institucional revelada no voto majoritário da corte.
Considerando que, para o julgamento do dia 10 de abril, foi aberta a porta que leva à sala em que os ministros – no uso de seu Poder – dirão a sua interpretação do texto constitucional, tem-se que Weber não estará limitada a repetir o que a maioria decidiu em 2016. No julgamento de 10 de abril, Weber não estará “presa” ao que ela chamou de razão institucional. Lícito dizer que aquela “colegialidade”, aquela “razão institucional” era provisória e morrerá no dia 10 de abril. A partir do novo julgamento (tomara que seja completo no dia 10 de abril), formar-se-á uma nova posição da colegialidade, uma nova razão institucional a respeito da interpretação do inciso LVII do Artigo 5o da Constituição. É para isso – para formar uma razão institucional definitiva sobre o princípio da inocência – que o atual presidente do STF marcou julgamento do mérito das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43 e 44.
O voto da Rosa
No julgamento do habeas corpus de Lula, a ministra Rosa foi clara ao considerar que o Plenário é o espaço ideal para rever posicionamentos, mas não em julgamento de habeas corpus. Disse a ministra, literalmente: “Senhora presidente [Carmen Lúcia], enfrento este Habeas Corpus nos exatos termos como fiz todos os outros que desde 2016 me foram submetidos, reafirmando que o tema de fundo, para quem pensa como eu, há de ser sim revisitado no exercício do controle abstrato de constitucionalidade, vale dizer, nas ADCs da relatoria do ministro Marco Aurélio, em que esta Suprema Corte, em atenção ao princípio da segurança jurídica, em prol da sociedade brasileira, há de expressar, como voz coletiva, enquanto guardião da Constituição, se o caso, outra leitura do artigo 5o, LVII, da Lei Fundamental. Tal preceito, com clareza meridiana, consagra o princípio da presunção de inocência, ninguém o nega, situadas no seu termo final — o momento do trânsito em julgado — sentido e alcance, pontos de candentes divergências, as disputas hermenêuticas”.
No próximo dia 10 de abril, o Plenário do STF não estará julgamento um pedido de habeas corpus. A porta que se abriu para o julgamento do dia 10 de abril, vai levar a ministra Rosa e os demais ministros – sem amarras ao julgamento da liminar de 2016 – a dizerem o que pensam sobre a obrigatoriedade da prisão depois do julgamento condenatório de segunda instância.
Considerando que o texto do Artigo 283 do Código de Processo Penal e os incisos LVII e LXI do artigo 5o da Constituição não mudaram desde 2016, tem- se que a Ministra Rosa poderá repetir, julgando o mérito, o que disse ao julgar o pedido liminar: “Não posso me afastar da clareza do texto constitucional… a Constituição Federal vincula claramente o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência a uma condenação. Não vejo como se possa chegar a uma interpretação diversa”.
Se nada mudar…
Como se vê, no limite de orientações rigorosamente jurídicas dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, o título do presente artigo representa mais do que uma premunição.
Com base nos fundamentos estritamente jurídicos que se tem até o momento, é lícito projetar grande possibilidade de que a interpretação da Constituição Federal volte a afastar a obrigatoriedade da prisão depois da condenação em segunda instância.
Contudo, apesar de mais de 150 mil presos estarem nessas circunstâncias, a pressão política é grande, pelo fato de um desses presos ser o ex-presidente Lula. Por isso, cumpre estar atento aos movimentos, não propriamente jurídicos, que podem influenciar o julgamento de 10 de abril.
Justificamos neste texto a complexidade e profundidade jurídica do tema. Ainda assim, podemos temer fundamentos nada jurídicos, conforme noticiado – e não desmentido – no blog da repórter Andréia Sadi (G1, 04/01/2019): “Na hipótese de o placar ficar 5 a 5, caberá a Toffoli o voto decisivo. E o blog apurou que o ministro pode rever a posição adotada em 2016, em nome do equilíbrio do país. O tema preocupa o governo Jair Bolsonaro”.
Rui Portanova é desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, doutor em Direito (UFP) e Linguística (PUC/RS) e mestre em Direito (UFRGS).
Fonte: justificando
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