Imperatriz, que declarou não ter recebido patrocínio algum, fez uma opção corajosa e arcou com suas consequências de cabeça erguida / Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
O samba deste ano da Imperatriz toca num ponto central: a luta pela terra
Brasil de Fato - Independente do resultado oficial, o Carnaval de 2017 já tem uma escola vencedora: Imperatriz Leopoldinense. A escola do bairro de Ramos, no subúrbio do Rio de Janeiro, já começou fazendo história muito antes de seus integrantes colocarem os pés na Sapucaí, na noite do último sábado.
Nos primeiros dias de janeiro, o anúncio oficial do enredo “Xingu, o Clamor da Floresta” causou um grande impacto. O clamor não veio exatamente da floresta, mas justamente daqueles que trabalham dia e noite para destruí-la: os ruralistas e as associações que representam o agronegócio no Brasil. Mas qual teria sido o motivo de tanta revolta?
Falar de índios no carnaval não é exatamente uma novidade. Aliás, difícil é encontrar um desfile de escola de samba que não traga homens e mulheres fantasiados com penachos, cocares e outros adereços de inspiração indígena. Inclusive, umas das agremiações carnavalescas mais tradicionais do Rio de Janeiro chama-se Cacique de Ramos, que vem do mesmo bairro da Imperatriz.
Um olhar atento à letra do samba enredo não revela explicitamente nenhuma menção ao agronegócio. Não fala de soja, de cana de açúcar, de gado, nem de agrotóxicos a letra fala. Passando pelas alas do enredo, percebemos, entre dezenas delas, uma cujo nome é: “Fazendeiro e seus agrotóxicos”, ilustrada por uma fantasia de pulverizador costal de agrotóxicos.
Será que a carapuça serviu?
Não custa lembrar que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. O que haveria de mais então em chamar uma ala de “O Fazendeiro e seus Agrotóxicos”? O problema não era só esse.
Ao contrário de todos os enredos que mencionam os índios desde que existe carnaval no Brasil, o samba deste ano da Imperatriz toca num ponto central (que é central desde que existe o Brasil): a luta pela terra.
Ainda que a letra deixe escapar certos clichês do censo comum (“a pura alma brasileira”) ou tentativas de apaziguar os ânimos (“Meu canto é bravo e forte, mas é hino de paz e amor”), o resultado é um samba que não deixa dúvidas do seu recado: os índios, hoje como há 500 anos, estão sendo massacrados e perdendo o que sobrou do seu território. E lutam.
Mas “lutar” não é um verbo intransitivo. Toda luta envolve um oponente – lutar contra alguém, e nesse caso, mesmo sem uma citação direta a carapuça serviu: o grande responsável pelo massacre indígena hoje no Brasil é o agronegócio. Especialmente na região do Xingu, mas no Brasil inteiro, os monocultivos de soja, cana, milho, eucalipto têm invadido as terras indígenas e provocado um desastre tanto do ponto de vista físico, a fome, quanto cultural, como a perda do modo de vida tradicional, que leva ao alcoolismo, suicídio etc. Até aviões pulverizadores de agrotóxicos têm sido usados como armas químicas para envenenar as aldeias e seus rios.
Até a Globo comprou a briga
A corajosa escolha da Imperatriz teve suas consequências. A reação coordenada do agronegócio contra um samba que sequer menciona o agronegócio escancarou o caráter anti-indígena dos latifundiários do nosso país. A Escola de Samba buscou mediar, e até mudou o nome da ala “Fazendeiro e seus Agrotóxicos” para “O Perigo dos Agrotóxicos”. Mas em momento nenhum, titubeou quanto ao foco principal do enredo-protesto: a luta dos indígenas pela terra (e contra o agronegócio, como eles mesmo se denunciaram).
A força do agronegócio, como sabemos, não fica apenas dentro das porteiras dos latifúndios. Há um componente a mais neste jogo: a dona do Carnaval carioca, também conhecida como Rede Globo. Aliada histórica do agronegócio, a Família Marinho é a legítima representante do latifúndio midiático que também impera no Brasil.
A transmissão do desfile da Imperatriz pela Globo beirou o patético. De uma hora e quinze minutos de desfile, apenas 20 segundos foram dedicados a ala dos agrotóxicos. Vamos deixar que Fátima Bernardes comente o assunto:
“Bom, aí uma ala que deu muita dor de cabeça para o carnavalesco, a ala O Perigo dos Agrotóxicos. Muita gente pensou que seria um enredo contra os agricultores, contra o agronegócio, e na verdade era mostrando o que realmente acontece, né? O uso e o perigo dos agrotóxicos…”
Um grande mal-entendido, né Fátima? Agora está tudo resolvido, próxima ala, produção!
Só que não. O agronegócio, como já falamos outras vezes por aqui, sabe a péssima imagem que tem perante a sociedade. A reação enérgica com argumentos totalmente descabidos não foi à toa.
Um Carnaval para a História
O Carnaval de 2017 já deixou sua marca na história dos sambas de luta que ainda trazem algum alento em meio a esta festa, cada dia mais comercial. A Imperatriz, que declarou não ter recebido patrocínio algum, fez uma opção corajosa e arcou com suas consequências de cabeça erguida. Além das notas de repúdio, vários comentários ofensivos foram feitos na página da Escola. Houve também críticas de algumas nações xinguanas que não foram convidadas para o desfile.
Mas o saldo final foi, de longe, positivo para a luta pela terra no Brasil. Nenhum movimento social ou imprensa alternativa possui a força de comunicar para tanta gente do povo quanto uma escola de samba do grupo especial do Rio de Janeiro.
É preciso mencionar também a emocionante ala “Um rio que era doce”, do desfile da Portela, que retratou o crime de Mariana. Contrastando com a alegria do carnaval, a ala mostrava pescadores desesperados com a morte do rio, olhando incrédulos para uma água de cor marrom. Os passistas seguravam cartazes, um deles escrito “Crime”.
Muito longe da festa popular que um dia representou, o carnaval da Sapucaí ainda tem seus resquícios de manifestação popular. Em meio a enredos comprados por tudo que é tipo de gente (desde ditador africano até Beto Carrero), ainda é possível surgir algo de novo.
Todo nosso respeito e admiração pela Imperatriz Leopoldinense, que neste ano representou, muito mais do que um canto de paz e amor, o nosso grito de guerra.
*Por Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
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