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O porta-voz do sertão: Patativa do Assaré


Pertence a Patativa do Assaré o título de “o maior poeta popular brasileiro”. Da sextilha nordestina aos versos camonianos, Patativa mostrou a força da literatura sertaneja.

Capa da Antologia Poética de Patativa do Assaré, organizada por Gilmar de Carvalho e publicada pela Edições Demócrito Rocha

mundoeducação - O nome dele é Patativa do Assaré, mas você pode chamá-lo também de “porta-voz do sertão”. Patativa, homem simples, mas de grande sabedoria e inteligência linguística, é um daqueles casos em que a poesia se mistura e se confunde com a vida de quem a escreve, por isso, conhecer a história do escritor é essencial para compreender sua poética. Longe do cânone literário e distante daquilo que se convencionou chamar de “a grande literatura” (afinal, o que é literatura?), Patativa do Assaré mostra que é preciso dessacralizar a arte, sobretudo a literária, e trazê-la para perto do povo.

Patativa do Assaré, na verdade, é pseudônimo de Antônio Gonçalves da Silva. O poeta nasceu no dia 05 de março de 1909, na Serra de Santana, pequena propriedade rural do município de Assaré, no sul do Ceará. Ainda menino, perdeu a visão do olho direito e, a despeito da pobreza, algo tão comum na dura rotina do homem sertanejo, cresceu interessado pela cultura popular: ouvia histórias e lia folhetos de cordel, foi menino violeiro e repentista. O talento para as rimas improvisadas deu grande fama ao poeta e, por volta dos vinte anos, foi apelidado de Patativa em alusão ao pequeno pássaro amazônico de canto incomparável. Posteriormente adotou o Assaré em homenagem à sua cidade natal.

Inspiração Nordestina, seu primeiro livro, foi publicado em 1956 e, em 1967, ganhou uma segunda edição, renomeada para Cantos do Patativa. Em 1970, foi lançada uma nova coletânea de poemas, Patativa do Assaré: novos poemas comentados e, em 1978, foi lançado Cante lá que eu canto cá. Em 1988, o público foi agraciado com o livro Ispinho e, em 1994, Fulô e Aqui tem coisa. A poesia de Patativa inspirou não apenas escritores, mas também músicos, sobretudo os cantadores do nordeste, contribuindo assim imensamente para a música popular brasileira. A característica principal de seu trabalho é a oralidade: o poeta transferia a palavra para o papel tal qual ela era falada pelo homem simples. Por esse motivo, seus poemas, feitos para serem recitados, perdem em significação e expressividade quando expressos por meios não verbais.

Engana-se quem pensa que o poeta – que nunca teve pretensão em sê-lo –, não sabia escrever versos complexos: Patativa criou versos nos moldes camonianos, inclusive sonetos na forma clássica (duas estrofes de quatro versos e duas estrofes de três versos, todos decassílabos). Para a poesia “matuta”, assim por ele denominada, reservava a poesia de rima e métrica populares, por exemplo, a décima e a sextilha nordestina (poema composto por seis versos). Embora tenha frequentado a escola apenas seis meses, Patativa do Assaré foi nomeado Doutor Honoris Causa (titulo atribuído à personalidade que se distingue pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos) de pelo menos três universidades.

O poeta e agricultor faleceu em Assaré no dia 08 de julho de 2002 aos 93 anos, deixando para a literatura e para a cultura popular uma inestimável contribuição. Para que você conheça um pouco mais de sua obra, o Mundo Educação selecionou cinco poemas de Patativa do Assaré que mostrarão o poder da palavra daquele que soube, como ninguém, cantar em verso e prosa a beleza e as mazelas do sertão nordestino. Boa leitura!




Amanhã

Amanhã, ilusão doce e fagueira,

Linda rosa molhada pelo orvalho:

Amanhã, findarei o meu trabalho,

Amanhã, muito cedo, irei à feira.


Desta forma, na vida passageira,
Como aquele que vive do baralho,

Um espera a melhora no agasalho

E outro, a cura feliz de uma cegueira.


Com o belo amanhã que ilude a gente,

Cada qual anda alegre e sorridente,

Como quem vai atrás de um talismã.


Com o peito repleto de esperança,
Porém, nunca nós temos a lembrança

De que a morte também chega amanhã.


Minha viola

Minha viola querida,

Certa vez, na minha vida,

De alma triste e dolorida

Resolvi te abandonar.

Porém, sem as notas belas

De tuas cordas singelas,

Vi meu fardo de mazelas

Cada vez mais aumentar.


Vaguei sem achar encosto,
Correu-me o pranto no rosto,

O pesadelo, o desgosto,

E outros martírios sem fim

Me faziam, com surpresa,

Ingratidão, aspereza,

E o fantasma da tristeza

Chorava junto de mim.


Voltei desapercebido,

Sem ilusão, sem sentido,

Humilhado e arrependido,

Para te pedir perdão,

Pois tu és a jóia santa

Que me prende, que me encanta

E aplaca a dor que quebranta

O trovador do sertão.


Sei que, com tua harmonia,
Não componho a fantasia

Da profunda poesia

Do poeta literato,

Porém, o verso na mente

Me brota constantemente,

Como as águas da nascente

Do pé da serra do Crato.


Viola, minha viola,
Minha verdadeira escola,

Que me ensina e me consola,

Neste mundo de meu Deus.

Se és a estrela do meu norte,

E o prazer da minha sorte,

Na hora da minha morte,

Como será nosso adeus?


Meu predileto instrumento,
Será grande o sofrimento,

Quando chegar o momento

De tudo se esvaicer,

Inspiração, verso e rima.

Irei viver lá em cima,

Tu ficas com tua prima,

Cá na terra, a padecer.


Porém, se na eternidade,
A gente tem liberdade

De também sentir saudade,

Será grande a minha dor,

Por saber que, nesta vida,

Minha viola querida

Há de passar constrangida

Às mãos de outro cantor.


Herança

Querida esposa que ouvindo está
Roubou-lhe o tempo a jovial beleza,

Mas tem o dote da maior nobreza

Sua bondade não se acabará.


Morrerei breve, porém Deus lhe dá
Força e coragem com a natureza

De no semblante não mostrar tristeza

Quando sozinha for viver por cá.


Não tenho terra, gado, nem dinheiro,
Só tenho o galo dono do terreiro

Que a madrugada nunca ele perdeu.


Conserva esposa, minha pobre herança,
Seja bem calma, paciente e mansa,

Você não chore, que este galo é seu.


O que mais dói

O que mais dói não é sofrer saudade

Do amor querido que se encontra ausente

Nem a lembrança que o coração sente

Dos belos sonhos da primeira idade.

Não é também a dura crueldade

Do falso amigo, quando engana a gente,

Nem os martírios de uma dor latente,

Quando a moléstia o nosso corpo invade.

O que mais dói e o peito nos oprime,

E nos revolta mais que o próprio crime,

Não é perder da posição um grau.

É ver os votos de um país inteiro,

Desde o praciano ao camponês roceiro,

Pra eleger um presidente mau.


Minha serra

Quando o sol nascente se levanta

Espalhando os seus raios sobre a terra,

Entre a mata gentil da minha serra

Em cada galho um passarinho canta.


Que bela festa! Que alegria tanta!

E que poesia o verde campo encerra!

O novilho gaiteia a cabra berra

Tudo saudando a natureza santa.


Ante o concerto desta orquestra infinda

Que o Deus dos pobres ao serrano brinda,

Acompanhada da suave aragem.


Beijando a choça do feliz caipira,

Sinto brotar da minha rude lira

O tosco verso do cantor selvagem.


Arte matuta

Eu nasci ouvindo os cantos

das aves de minha serra

e vendo os belos encantos

que a mata bonita encerra

foi ali que eu fui crescendo

fui vendo e fui aprendendo

no livro da natureza

onde Deus é mais visível

o coração mais sensível

e a vida tem mais pureza.


Sem poder fazer escolhas

de livro artificial

estudei nas lindas folhas

do meu livro natural

e, assim, longe da cidade

lendo nessa faculdade

que tem todos os sinais

com esses estudos meus

aprendi amar a Deus

na vida dos animais.


Quando canta o sabiá

Sem nunca ter tido estudo

eu vejo que Deus está

por dentro daquilo tudo

aquele pássaro amado

no seu gorgeio sagrado

nunca uma nota falhou

na sua canção amena

só canta o que Deus ordena

só diz o que Deus mandou.

*

 

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