Brasil247
A pergunta que não quer calar do processo de impeachment contra Dilma Rousseff é a seguinte: valeu a pena apoiar a investigação contra Eduardo Cunha, adversário que jamais escondeu a intenção de avançar sobre o mandato da presidente caso o Partido dos Trabalhadores resolvesse dar 3 votos decisivos no Conselho de Ética?
Os fatos são conhecidos. Enquanto o PT não se definiu a favor da investigação contra Cunha, por meses a fio o pedido de abertura de impeachment contra Dilma permaneceu paralisado na Câmara de Deputados.
Depois que, em segunda delação premiada, o lobista Júlio Camargo informou que havia feito um pagamento de propina de US$ 5 milhões a Cunha, a pressão sobre os três petistas presentes tornou-se grandiosa, quem sabe irresistível. No final de 2015 uma consulta à bancada do PT revelou que uma leve maioria de 34 votos sobre 60 era favorável a investigação contra Cunha. Em 2 de dezembro o presidente do Partido, Ruy Falcão, disse que o partido iria dar os votos necessários para o prosseguimento da investigação.
Cunha cumpriu a promessa na mesma hora e abriu o processo de impeachment na Câmara. Modificada a partir de sugestões do próprio Cunha, que corrigiu erros grosseiros presentes na formulação inicial, a denúncia contra Dilma foi aprovada e levada ao Senado, onde o afastamento temporário se resolveu. A presidente deixou o cargo em 12 de maio e enfrentará, nas próximas semanas, os lances finais de uma batalha duríssima para retornar à Presidência. Antes mesmo da decisão, contudo, o país encontra-se às voltas com mudanças radicais promovidas pelo governo interino, empenhado em desmontar os principais programas de bem-estar social e de desenvolvimento econômico, inclusive as regras que mantém a exploração do pré-sal nas mãos da Petrobras.
Em várias oportunidades, aqui neste espaço, discuti o explosivo conflito de interesses presente nas relações entre Cunha e Dilma. Acrescentando um terceiro personagem, o PGR Rodrigo Janot, titular da primazia de pedir uma investigação contra a presidente da República e também contra o presidente da Câmara, lembrei que os três formavam, em Brasília, uma versão dramática do triângulo das Bermudas, aquela zona de turbulências atmosféricas do Caribe onde, diz a lenda, grandes aeronaves costumam desaparecer sem deixar rastro. Em 20 de maio de 2015, quando Rodrigo Janot lutava para conseguir um segundo mandato como procurador geral da República, assinalei:
“Dilma encontra-se no centro de um triângulo de interesses políticos e perspectivas de poder conflitantes. Estão envolvidos na mesma situação o próprio Janot e o deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara de Deputados. Difícil imaginar uma ideia que possa agradar a todas as partes”.
(...) Responsável exclusivo pela aceitação ou rejeição de um eventual processo de impeachment, que só começa a andar na Câmara por decisão unilateral de seu presidente, até agora o deputado Eduardo Cunha tem-se mostrado um aliado do Planalto nessa questão crucial. Cunha declara-se alinhado com a tese, irretocável do ponto de vista jurídico, de que os processos que podem levar ao afastamento da presidente do cargo só podem ser abertos quando envolvem crimes ocorridos no exercício do mandato presidencial em curso — isto é, depois de 1 de janeiro de 2015.
Mas, ameaçado de ser degolado pelo PGR Rodrigo Janot nas investigações da Lava Jato, o evangélico Cunha já informou que irá transformar a vida de Dilma num "inferno" se ela usar de suas prerrogativas para manter o procurador por mais dois anos no cargo. Num país onde a oposição tem um núcleo de parlamentares que persegue uma oportunidade de pedir um processo de impeachment como se fossem caçadores de calça curta procurando borboletas na floresta, não é difícil imaginar o que ele quer dizer com isso.
Pelo desempenho exibido até aqui pela aprovação de uma série de projetos que não interessavam ao governo, não é difícil imaginar que Cunha seja capaz de cumprir o que ameaça fazer. Nem é difícil imaginar o apoio que possa receber caso resolva mudar de lado.
Poucos meses depois, a situação evoluía de modo ainda mais desfavorável para Dilma. Voltei a falar sobre o triângulo das Bermudas. O projeto de afastar Dilma através de um golpe, com base numa denúncia insustentável de “pedaladas fiscais”, já se tornara mais do que visível. Em agosto de 2015, escrevi:
“Em situações de crise, é bom não perder prioridades de vista. O ponto central, hoje, concentra-se na preservação do mandato de Dilma Rousseff, obtido com mais de 54 milhões de votos. Não é um governo que está em risco. É a democracia – e isso diz respeito a todos os brasileiros.
Eu sei disso, você sabe disso, a oposição também. Trabalha noite e dia para tirar a presidente do Planalto. Todas suas iniciativas têm essa finalidade.
Inclusive quando Fernando Henrique Cardoso pede para a presidente renunciar, confirmando o típico costume da elite brasileira de defender para os outros sacrifícios que jamais cogita para si. Quando o Real afundou, FHC pediu um socorro de US$ 40 bilhões para o tesouro dos Estados Unidos, pedalada internacional que lhe permitiu atravessar a reeleição sem deixar o eleitor perceber o que estava ocorrendo. Quarenta bilhões de dólares de pedalada, entendeu? Olha aí, TCU.
Pode haver revolta contra a situação econômica. Pode-se fazer críticas à desarticulação política do governo.
Mas não há legitimidade nos pedidos de afastamento da presidente. O que se tenta, hoje, é criar um ambiente político capaz de justificar um atalho para entregar a saída da crise brasileira e a construção de um novo pacto econômico e político, de longa duração, a um grupo que não recebeu mandato para isso. Daí o permanente, as tentativas de impugnação da vitória de Dilma de qualquer maneira.
Não é só um mandato de quatro anos está em jogo. É uma década, quem sabe duas. E é claro que quem fala de futuro também coloca em questão as mudanças ocorridas no passado recente.”
Exatamente um ano depois desta avaliação, a história do segundo mandato de Dilma não está concluída. Tampouco a de Eduardo Cunha que, embora tenha perdido a presidência da Câmara, conta com ajuda de um imenso cortejo de aliados para preservar o próprio mandato e tentar fugir de uma condenação pela Lava Jato. Você pode pensar o que quiser a respeito. A minha opinião é que qualquer que seja o destino de Cunha, não tem a relevância de Dilma. Não pode ser comparável nem compreendido como uma barganha. Não são punições compensatórias.
Embora não tenha surgido nenhuma prova de crime de responsabilidade, a possibilidade de Dilma ser afastada definitivamente é terrivelmente real, embora não seja inevitável.
A relevância de seu destino, para o futuro do Brasil, da maioria dos brasileiros e de nossa democracia, é infinitamente mais decisiva do que o destino de Eduardo Cunha, qualquer que seja ele. Está em jogo o devido respeito pelo voto popular e pela vontade das urnas. Contra Cunha, pesam provas, fatos e contas na Suíça.
A ideia de que a persistência de um pacto silencioso em benefício de Cunha poderia ter beneficiado Dilma, impedindo um golpe de avançar até aqui, é assustadoramente tentadora. A verdade é que não pode haver nenhuma certeza a respeito. É provável que, ao menos em seu cronograma atual, o impeachment poderia ter sido evitado – pelo menos, enquanto Cunha estivesse disposto a cumprir sua parte, o que nunca pode ser visto como certeza, em função das imensas contradições do personagem.
Outro ponto a considerar é que o Congresso era apenas um caminho legal para o afastamento da presidente. Outro, que segue seu curso, é o julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Pela repulsa que o presidente da Câmara passou a provocar junto à maioria dos eleitores, para quem se tornou o inimigo público número 1, é provável que, pressionado por uma população cada vez mais desconfiada e irritada, uma parcela considerável do PT desse as costas ao governo caso insistisse em manter-se numa postura favorável a Cunha. Na prática, os petistas decidiram ir para cima de Cunha mesmo sabendo o risco que corriam.
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