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Justiça brasileira condena pessoas em massa com base apenas na palavra do policial




Foto: Reprodução/Mídia Ninja. Manifestação em desagravo a Rafael Braga Vieira

Quem esteve apenas um dia em contato com o sistema de justiça criminal brasileiro provavelmente teve contato com alguma sentença judicial que condena um indivíduo a anos de prisão, tomando como base da “prova acusatória” os testemunhos de policiais em audiências. A prática é tão comum que se multiplicam entendimentos e jurisprudência dos mais diversos tribunais no sentido de que “a palavra do policial é suficiente para sustentar uma decisão condenatória”.

No Rio de Janeiro, por exemplo, condenações criminais têm sido cada vez mais sustentadas em cima da súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ). Súmula é o nome que se confere para o posicionamento de um Tribunal que, de tanto decidir de uma mesma forma, solidifica o entendimento em um enunciado para ser aplicado em todos os casos e “poupar” os juízes de discutirem o tema novamente.

No caso, a súmula 70 dita que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A redação dela representa um entendimento que se alastra por todo o país e já é “pacífico” (isto é, sequer tem divergência significativa) em todos os tribunais de justiça. Ou seja, a partir da crítica a essa súmula, coloca-se em xeque toda uma construção de entendimentos de tribunais de outros estados.


Em outras palavras, essa súmula ou entendimentos idênticos, porém não sumulados, “resolvem” o problema de juízes de direito e desembargadores que condenam todos os dias centenas ou milhares de pessoas, ao tomar como base exclusiva a palavra do policial que efetuou a prisão. Por isso, na sentença em casos criminais, magistrados se valem desse enunciado para ignorar toda a contestação produzida pela defesa.

Vale dizer: condenar exclusivamente com base na palavra do policial é algo, no mínimo,incomum em países com regimes democráticos sólidos, que se valem, em regra, de câmeras acopladas em viaturas e nos próprios policiais, a fim de colocar suas versões à contraprova e minimizar a probabilidade de erros.

No Brasil, o que ocorre em geral é o seguinte: dois policiais efetuam a prisão e levam o indivíduo – no caso brasileiro, com enormes chances de ser jovem, pobre e negro – para a delegacia. Lá, eles depõem e, com base nas suas palavras, o(a) representante do(a) Ministério Público oferece a denúncia criminal. O(a) juiz(a) recebe a denúncia e marca a audiência cujas únicas testemunhas são os mesmos policiais. Seus depoimentos em juízo fundamentam exclusivamente a sentença criminal condenatória e o indivíduo – que estava em cárcere desde o dia que foi preso pelo policial – ficará mais alguns anos na prisão.

Nos corredores e na academia, críticas a essa prática cotidiana forense se acumulam. Ao Justificando, a professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux, falando a partir da súmula 70 do TJ-RJ, afirma que entendimentos como esse são “uma aberração jurídica que não pode ser compreendida dentro dos padrões constitucionais democráticos”. “Atribui-se fé pública a policiais como se estes estivessem acima de outras pessoas. Na forma como é aplicada, legitima prisões injustas e pode também indiretamente contribuir para a corrupção policial, como se viu no Rio de Janeiro recentemente”, explica Luciana.

Isso porque a prática generalizada de confiança absoluta na palavra dos policiais geram problemas práticos evidentes, como por exemplo quando todo um batalhão é posto sob suspeita de corrupção. Um batalhão da PM quase inteiro teria recebido propina de traficantes e não realizava prisões do grande tráfico, mas mantinha, para compensar, muitos autos de prisão em flagrante de pequenos traficantes, muitos deles usuários. Essa súmula, da forma como é aplicada, serve para legitimar prisões sem investigações e sem provas”, afirma a professora.

Para Luciana, a súmula 70 é “uma violação do contraditório, pois presume como verdadeira e acima de dúvidas uma testemunha de acusação que pode ser suspeita e dificulta ainda mais o trabalho da defesa. O juiz nem precisa justificar a validade ou a coerência do depoimento do policial em contraste com outras provas, apenas menciona a súmula e pronto: condena automaticamente”, completa Luciana.


A súmula 70 é fruto de gente autoritária que, para desonerar-se do seu dever de pensar, encontra na subsunção (palavra do policial + fatos narrados = condenação) uma desculpa para poder condenar de maneira irresponsável. A súmula 70, assim, criou algo que venho chamando de “Eichmannização do direito”, porquanto, tal como Eichmann, o juiz se defende dizendo que condenou – sem provas – porque ele é um homem obediente que apenas cumpre as leis do Pai (Tribunal). Djefferson Amadeus, advogado criminalista e colunista no Justificando.

Policiais são os maiores interessados em defender a legalidade da própria atuação

Policiais militares em ocupação no Complexo do Alemão, conjunto de favelas localizado na zona norte do Rio. Foto: Reprodução/Agência Brasil.

Os policiais militares responsáveis por uma prisão são os primeiros interessados em legitimá-la como correta, ainda que na prática não tenha sido. Quem afirma isso é o professor de Processo Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Antônio Pedro Melchior, também advogado criminalista. Para ele, “agentes policiais não podem ser considerados testemunhas, porque não são pessoas desinteressadas com o julgamento do mérito do processo”.

“Policiais que prenderam o imputado em flagrante ou atuaram na investigação têm interesse em defender a legalidade e correção da própria atuação, o que é mais ou menos óbvio. Não são testemunhas por isto”, pondera Melchior. E continua, “se necessário ouvi-los em juízo, devem ser tomadas com reserva, por não estarem compromissados em produzir ‘conhecimento verdadeiro’ sobre os enunciados fáticos”. Essa é uma das razões pelas quais, para ele, a Súmula 70 precisa ser revista.

Outra razão apontada pelo professor está na prática cotidiana do poder penal no Brasil. De acordo com Melchior, “do ponto de vista da criminologia crítica, confirmado pela prática cotidiana no poder penal no Brasil, devemos adotar como premissa o princípio da irregularidade dos atos de poder. Salo de Carvalho fala em um absoluto pessimismo quanto ao agir persecutório. Ele está correto, também nessa questão. A súmula 70 do TJ-RJ aposta em uma presunção de legitimidade que não se confirma, de forma alguma, na realidade periférica do Rio de Janeiro”.


Todas as pesquisas sérias apontam que a instituição policial está entre aquelas em que a população menos confia. Como pode um Tribunal condenar com fundamento exclusivo na palavra desses agentes?, questiona Melchior.

Para ele, este aparente paradoxo não é percebido pelos membros da carreira jurídica, pelo contrário: “a máquina repressiva depende da palavra dos policiais para condenar e, assim sendo, constituem enunciados, precedentes e, quem sabe alguma doutrina para lhe conferir legitimidade”.

Racismo Institucional

Dentre tantos jovens negros condenados em sentença que tem como fundamento exclusivo essa súmula, destacou-se nos últimos tempos o caso de Rafael Braga (foto), que foi o único condenado brasileiro no contexto dos protestos de junho de 2013 pela “exótica” acusação de porte de explosivos consistentes em uma garrafa de desinfetante marca “Pinho Sol” e água sanitária.

O processo do Rafael Braga, que ficou anos preso por conta dessa acusação, ganhou repercussão e contornos ainda mais sinistros quando, em regime aberto, ele foi abordado com violência por um policial, que não encontrou nenhuma droga com ele, mas que, ainda assim, levou ele em flagrante para a delegacia por tráfico. Tudo isso foi presenciado por uma testemunha ocular, que não tem parentesco com o jovem e que foi de espontânea vontade na delegacia prestar declarações sobre o que viu.

Contudo, apesar da prova defensiva de inocência, Rafael foi condenado unicamente com base na palavra do policial – palavra esta posta em dúvida tanto por ele, quanto pela testemunha. Fundamentação da sentença: Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Pena: 11 anos de prisão.

O caso desperta indignação no movimento negro, que passou a denunciar o racismo institucional em órgãos de justiça, que por conta disso passam a solidificar entendimentos para “legitimar” condenações em massa que violam o processo legal e perpetuam práticas discriminatórias raciais.

Como explica o professor Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Harvard, Adilson Moreira: “essa súmula do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não diz que ele foi criada para permitir que negros sejam condenados sem provas suficientes. Mas ela tem um impacto desproporcional sobre negros porque a atuação das nossas polícias é inteiramente seletiva”.

Moreira, que é autor de obras sobre direito antidiscriminatório, lembra que o Judiciário, ao acatar a palavra do policial como base exclusiva para condenar, baseia toda sua atuação em cima de uma estrutura que se pauta na discriminação – “centenas de estudos sobre discriminação institucional nas polícias militares dizem de forma muito clara que nós temos razões fortíssimas para questionarmos esses depoimentos. Muitas vezes, policiais plantam provas com o objetivo específico de criminalizar pessoas negras”.

“Documentos internos das próprias polícias não deixam dúvidas de que agentes policiais brancos e negros, mas principalmente brancos atuam de forma francamente discriminatória e que seus depoimentos jamais poderiam ser tomados como única prova ou prova judicial em um processo cujo réu principal é um homem negro”, conclui o professor.


Assista ao “Coisas que Você Precisa Saber – Especial Rafael Braga” para entender melhor sobre o tema:



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