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ONDE COMEÇA O ASSÉDIO



A conversa sobre o assédio voltou a ser tópico do dia depois da história que envolve o ator José Mayer. Com ela, voltou também a defesa do assediador, mesmo depois de ele ter se desculpado, assumindo, com isso, e necessariamente, sua culpa. A defesa do assediador é, ao mesmo tempo, a defesa de si próprio: a defesa de alguém que provavelmente já fez a mesma coisa, ou que quer continuar tendo o pleno direito de assediar.

Parte dessa pronta iniciativa em se defender é compreensível, porque, se nós mulheres nos relacionamos com homens, é porque isso começa de algum jeito, através da paquera e flertes. O que se passa na cabeça de um homem que flerta com uma mulher é que ele a deseja, mas nem todos conseguem aceitar que existe a possibilidade de a mulher não correspondê-lo. Para que uma relação se desenvolva para qualquer tipo de troca, é preciso que a mulher também deseje, e é aqui que se encontra o grande enigma para tantos homens: mulheres também têm impulsos sexuais. Havendo desejo de ambos os lados, a mágica está completa: temos uma relação – seja ela de sexo casual, ficada, namoro, casamento, enfim – consensual. Se a mulher também deseja aquela relação, ela deixará isso claro, ela entrará no jogo de flertes.
Existe a ideia de que as mulheres “se fazem de difíceis” ou que quando dizemos “não”, na verdade, estamos dizendo “sim”, ideia essa que só existe porque não há aí espaço para ouvir o que as mulheres temos a dizer, não há curiosidade a respeito do nosso querer. É assim que se define o assédio. Ele é a ação do homem que não está interessado no que se passa na cabeça da mulher, no que ela quer, quais são seus desejos; porque, para o assediador, a mulher é um objeto inanimado e sem desejos e vontades. Essa visão sobre a mulher não é uma anomalia; pelo contrário, é a norma. O elemento mulher é um conceito, que tem significados diferentes dependendo da formação cultural que o sustenta. O meu conceito – a mulher que me tornei – é a de um indivíduo autônomo, dotado de habilidades para realizar qualquer tipo de atividade, trabalho, tarefa, função, ou projeto de vida, mas que cabe apenas a si própria decidir qual será esse trabalho, tarefa, função ou projeto de vida. O conceito patriarcal de mulher é o de quem tem um papel e funcionalidade que servem exclusivamente à sociedade construída por homens – e que independe da vontade da mulher.
Vamos entender o que é o patriarcado. É a cultura construída com base na ideia de que um gênero domina – o masculino – e o outro se submete – o feminino – ao domínio masculino. Por dominar, entende-se tanto a ideia de que pessoas do gênero masculino são superiores às do gênero feminino, sendo mais inteligentes, habilidosas e fortes – emocional e fisicamente. Também significa que as pessoas do gênero masculino estão autorizadas a determinar um padrão de comportamento para as pessoas do gênero feminino. E, por fim, também significa que o corpo e a sexualidade das pessoas do gênero feminino estão sujeitos exclusivamente ao uso que as pessoas do gênero masculino possa atribuir-lhes. As referências culturais que podemos lembrar para entender como o patriarcado se sustenta são infinitas. O ocidente carrega símbolos de variadas origens e civilizações, e uma delas é a grega. Zeus, o chefe dos deuses, tem um longo histórico de estupros: transformou-se em cisne para copular com Nêmesis, que para fugir das investidas do deus, se disfarçou de gansa; transformou-se numa serpente para transar com Perséfone; transou com Alcmena transformando-se em seu marido, Anfitrião; transformou-se em chuva de ouro para penetrar em Dânae; raptou Egina; e se disfarçou de touro para se esconder de sua mulher Hera e raptar Europa. Dessas figuras femininas, Perséfone passou por um outro rapto, quando Hades a sequestrou e a manteve presa em seu reino. A Bíblia também traz histórias em que os personagens masculinos são donos de suas esposas, muitas vezes de seus haréns, demonstrando que para aquela sociedade a mulher deve sempre estar sujeita ao homem, como podemos ver, por exemplo, no seguinte trecho:
Semelhantemente, ensine as mulheres mais velhas a serem reverentes na sua maneira de viver, a não serem caluniadoras nem escravizadas a muito vinho, mas a serem capazes de ensinar o que é bom. Assim, poderão orientar as mulheres mais jovens a amarem seus maridos e seus filhos, a serem prudentes e puras, a estarem ocupadas em casa, e a serem bondosas e sujeitas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não seja difamada. (Tito 2:3-5)
Todas essas referências são apenas algumas demonstrações de como a civilização ocidental se formou e estabeleceu um conceito patriarcal de mulher. Em todas essas amostras o domínio do homem sobre a mulher é claro, assim como a ideia de que sua vontade é irrelevante diante dos propósitos masculinos. É por isso que os próprios homens criam situações que extrapolam o simples flerte, desrespeitam limites e sua abordagem se transmuta em assédio. Ou para além de outras formas de violência de gênero, que só acontecem porque para quem as pratica existe uma autorização implícita a tratar a mulher como posse, ou, em tempos modernos, propriedade privada, ambas coisas que se conquistam quem for o mais bárbaro.
Quem escreve é uma mulher. E escrevo porque já faz tempo – depois de passar por uma criação machista, por violência sexual, por assédio, por situações em que me vi intelectualmente diminuída por ser mulher, por medo de dizer ou agir e ser mal interpretada, por ser cobrada a casar e ser mãe – que reconquistei meu direito de decidir sobre minha vida e sobre meu corpo. Reconquistei meu direito de escolha. Reconquistei a habilidade de dizer “não”. E, a partir dessa ruptura com um ciclo de subserviência, posso afirmar categoricamente que a cultura em geral será reconquistada porque as mulheres aprenderam que podem dizer “não”, e mais importante, que isso ensinará aos homens que o mundo não é só deles.
Fonte: revistaforum

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