About Me

BVO-news.jpg

FHC DIZ QUE BRASIL, SEM DEMOCRACIA, REFORÇOU DEMOCRACIA NO MERCOSUL



247 - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defendeu em artigo neste domingo, 5, o legado do senador José Serra (PSDB-SP) à frente do Itamaraty. Acusado de ter recebido R$ 23 milhões em uma conta secreta na Suíça na campanha presidencial de 2010, Serra pediu exoneração do cargo alegando problemas de saúde. Em seu lugar, Michel Temer indicou o também senador tucano Aloysio Nunes (PSDB-SP). 

Para Fernando Henrique, Serra fortaleceu a cláusula democrática do Mercosul, justamente quando o Brasil deixou de ser uma democracia, no golpe parlamentar de 2016, apoiado pelo próprio FHC, que alçou Temer ao poder. "O Itamaraty, sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela", afirma. 

O ex-presidente tucano critica o "rearranjo da ordem global", exemplificado na política de Donald Trump e saída da Grã Bretanha da União Europeia. "O rearranjo atual da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem capacidade de defesa e visão estratégica", afirma. 

"É o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que entraremos em um jogo 'de gente grande", afirma.

Leia abaixo a íntegra do artigo de Fernando Henrique Cardoso.

Jogo de gente grande

por Fernando Henrique Cardoso

No carnaval passeei com casais amigos por Florença e vizinhanças. Há mais de meio século, eu, minha mulher Ruth, Bento e Lucia Prado e Arthur Giannotti passeáramos pela mesma região com a fascinação da primeira vez e a energia da juventude. Lá, de onde escrevo este artigo, passamos o 31 de dezembro de 1961.

Desta vez, com o mesmo deslumbramento, revi o que pude das cidades toscanas. Em 1961 vivíamos o clima da Guerra Fria — russos e americanos se enfrentavam por procuração, como na "crise dos mísseis" em Cuba — e as marcas da guerra quente estavam presentes na Europa bombardeada. Agora, nem mesmo a eventual tensão belicosa que os dias de Trump deixam entrever assusta o Ocidente.

A memória se esfuma: passa-se por um ou outro cemitério americano em solo italiano e só os mais velhos, imagino, ainda se lembram do que foi a luta dos Aliados contra o Eixo totalitário. Em poucos brasileiros ressoam os nomes de Monte Cassino e Monte Castello, marcos do heroísmo dos soldados brasileiros.

É bom, entretanto, não esquecer. Desfrutando o gênio de Masaccio ou o colorido e a perspectiva dos afrescos de Ghirlandaio, a poucos passos um do outro na Santa Maria Novella, é bom darmo-nos conta de que o que o passado construiu pode romper-se e não só na arte.

Vale a pena recordar que a História é mãe e madrasta ao mesmo tempo.

Os sinais do futuro podem não ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver.

O pós-guerra, a despeito das diferenças entre comunistas e capitalistas, resultou na criação das Nações Unidas e na corresponsabilização dos vencedores da guerra pela ordem global e pela paz mundial.

O arcabouço político que precedeu a globalização econômica está se modificando, e a continuidade do que pareceria imutável no espírito ocidental depois de tanta violência e morte, o internacionalismo, não pode mais ser tomado como algo definitivo.

Será que os eleitores do Brexit ou os rebelados do Rust Belt, que atribuem suas perdas à globalização e aos imigrantes, acaso se deram conta de que estão destruindo o que as gerações passadas fizeram com tanto esforço? Provavelmente não e pouco importa.

O que é certo é que o "equilíbrio de poder" que americanos, chineses, russos e europeus construíram depois da guerra de 1939-45 está abalado. E não pela "desglobalização" ou pelas crises da economia — que sempre pesam — mas pela visão do mundo e do poder que os governantes da geração atual parecem acalentar.

Os Estados Unidos com Trump se retraem dos compromissos internacionais: o "America first" de Trump visa mais o fortalecimento da economia doméstica do que o predomínio mundial.

Os chineses se expandem na economia e se fortalecem regionalmente, mas sem empenho em construir o mundo à sua semelhança, como tinham os americanos.

A Rússia se contenta em intervir de onde era excluída, de "sua" área imperial e das zonas onde historicamente os otomanos deram as cartas.

E por aí vão refazendo caminhos os antigos donos do mundo, deixando a Europa escabreada.

Diante disso, o que cabe aos que ainda não têm voz decisiva no capítulo global, como nós brasileiros, é dar-nos conta de nossos interesses e ver estrategicamente, sem alinhamentos automáticos nem mesmo ideológicos (pois disso não se trata como na luta contra o Totalitarismo ou o Comunismo), para que lado vai o mundo e como melhor nos situamos nele.

Este "pragmatismo responsável" não deve se eximir de tomar partido, entretanto, na defesa dos direitos humanos e da democracia quando for o caso.

Não deve tão pouco deixar de avaliar friamente os interesses econômicos de nosso povo. Se até Larry Summers, ex-ministro da Fazenda dos Estados Unidos e pilar do pensamento liberal de mercado, para compensar as angústias da globalização, apresentou um texto ao Berggruen Institute falando de "nacionalismo responsável", por que não deveríamos repensar nossas chances, interesses e responsabilidades quando uma nova ordem mundial começa a esboçar-se?

O Itamaraty, sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela.

Precisamos intensificar os liames com os vizinhos da América do Sul no lado do Pacífico e, principalmente, dar maior força a nossa ligação com a Argentina. Da mesma forma, necessitamos de sólida reaproximação com o México, flechado por Trump; devemos ampliar nossas convergências, não só econômicas mas políticas, com aquele país.

O muro proposto separa não apenas o México: separa os latino-americanos e os americanos adversos à insensatez de Trump.

Começamos a vislumbrar que as mudanças no tabuleiro internacional não vão na direção de um novo Hegemon, mas abrem espaço para alianças regionais que podem transcender o hemisfério. Neste, por escolha dos Estados Unidos, estão distantes os tempos da Alca.

Quem sabe um acordo com o Mercosul se torne viável, com os alemães à frente e os ingleses correndo à parte, mas também interessados em, ao se distanciarem de Bruxelas, não perderem espaços no mundo.

China e Índia, que crescem 7% ao ano, precisarão cada vez mais de comida e minérios de que dispomos.

O rearranjo atual da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem capacidade de defesa e visão estratégica.

É o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que entraremos em um jogo "de gente grande".



Postar um comentário

0 Comentários